A literatura de mulheres periféricas

por Carolina Delboni

Conversamos com nove escritoras e poetas que usam a palavra como arma para transformar olhares e construir novas narrativas na literatura brasileira

“Digam ao povo brasileiro que meu sonho era ser escritora, mas eu não tinha dinheiro para pagar uma editora”. A frase é de Carolina Maria de Jesus, escritora, negra, favelada e catadora de papel. Ela viveu às margens do seu tempo, mas não foi a única e nem a última. A literatura está cheia de textos produzidos por mulheres periféricas. Não são conhecidas pela grande mídia, procuradas pelas grandes editoras nem têm uma orla de seguidores nas redes sociais. São mulheres que vivem na periferia, da sociedade e na própria geografia da cidade. Muitas, não por acaso, são negras.

A arte salva e não há literatura que não seja capaz de ser ferramenta de transformação social. Não à toa, essas mulheres poetizaram a própria existência – para existir. Mulheres que encontraram moradia na escrita. Existir é exercício diário no mundo, mas existir na própria periferia do mundo é um trabalho muito mais árduo. Demanda doses extras de oxigênio, que é outra coisa que parece andar em falta. Mas, enquanto o mundo entra em colapso, são exatamente as mulheres periféricas que nos lembram de que é preciso peito pra viver – ou sobreviver.

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Carolina Maria de Jesus poetizou sua existência. Aos 33 anos, desempregada e grávida, mudou-se de Minas para a favela do Canindé, na zona norte da capital paulista. Trabalhava como catadora de papel e, nas horas vagas, registrava o cotidiano da favela em cadernos que encontrava no lixo que recolhia. Um destes diários deu origem a seu primeiro livro, Quarto de Despejo – Diário de uma Favelada, publicado em 1960. A obra virou best-seller.

Muitas outras poetizam diariamente a mulher periférica brasileira. Elas afloram, na sociedade, uma possibilidade de literatura. Entre livros, publicações acadêmicas, redes sociais, coletivos, saraus, o que for. Mulheres que ampliam olhares para um lugar onde a sociedade não está acostumada a olhar. De onde isolamento social é justificativa pra nascer projeto coletivo. De onde pandemia impulsiona cultura. Porque a literatura de mulheres periféricas salva.

A Tpm conversou com nove escritoras e poetas que usam as palavras para transformar olhares e construir novas narrativas na literatura brasileira.

Lu Ain-Zaila

Começou a escrever em 2015, quando se deu conta de que só ela poderia preencher o vazio que sentia. Moradora de Nova Iguaçu, no Rio de Janeiro, Lu Ain-Zaila escreve literatura afrofuturista, movimento que levou aos centros acadêmicos.

“Ser uma mulher negra escrevendo é libertador. Sair do chão periférico, que é continuamente desacreditado em ter poder, é incrível. Sou a primeira mulher negra na história da literatura nacional a escrever uma ficção afrofuturista com uma mulher negra protagonista e tenho 3 livros autopublicados, mescla de literatura afrofuturista e periférica. É um caminho que a periferia entende como a melhor forma de contar suas histórias. Investi salário, seguro-desemprego, fiz financiamento coletivo e apenas a minha última obra (2019) está numa editora do gênero. Afrofuturismo é um caminho de projeção negra estética-política anterior ao nome, que surgiu em 1994. Veio dos EUA, onde se debatia inicialmente a lacuna das produções negras na ficção cultuada na cultura pop. O racismo pauta o desinteresse em projetar pessoas negras no futuro, mas o movimento está combatendo e mudando isso. 

Minha escrita reconhece os lugares periféricos, as pessoas e suas realidades. Quando uma empregada doméstica muda o mundo no seu contexto, isso é muito forte para quem lê. Passamos a acreditar nesses lugares sociais como dignos de promover mudanças para além do literário. Vejo a força de uma heroína em quem estuda ou lê em pé no transporte. Essas são as marcas da minha literatura. O que estamos vivendo toca a minha literatura futura e a resistência à racialização dos prontuários cabe perfeitamente numa história. O direito-privilégio de ficar em casa tem exacerbado e exposto vários problemas que já nos eram fisicamente mortais antes. Essas palavras precisam ser escritas.

Os encontros literários on-line são a minha forma de intervenção. As ações culturais são mais que espaços de promoção física de cultura. São receitas sobre fazer acontecer em alguma outra periferia. E é inegável o fortalecimento político e coletivo que essas ações promovem ao nos fazer crer que temos lugar no mundo. Estou escrevendo meu próximo livro e não sei como farei tudo isso em termos monetários, mas vou. Estou viva, compreendo o jogo racial desta sociedade sobre mim e busco garantir que, para a próxima geração, será um pouco ou muito diferente”.

Dinha Maria Nilda

Nascida em Milagres, Ceará, e moradora do Parque Bristol, em São Paulo, ela acaba de ser contemplada no edital de Literatura "Arte como Respiro", do Itaú Cultural. O trabalho de Dinha foi um dos 200 escolhidos, entre os mais de 12 mil inscritos pelo Brasil. 

“Comecei escrever aos 12 anos porque queria ter um diário. Como não tinha dinheiro pra comprar um com chave, resolvi escrever nos cadernos velhos que sobravam da escola. Criei códigos, que depois foram se tornando metáforas, capazes de ‘trancar’ os significados. Aos poucos, minha escrita foi migrando da prosa de um diário adolescente para a poesia da mulher adulta de hoje. Escrevo literatura brasileira feminina e negroperiférica. Não é uma escolha, a princípio se trata de lugar de fala mesmo. Gosto e valorizo esse lugar, pois ele compõe boa parte da minha identidade e se relaciona com minhas lutas pessoais.

Minhas poesias são publicadas por uma editora independente de mulheres 'fazedoras' de livros, as Edições Me Parió Revolução. Torço para que minha literatura seja ferramenta social e escrevo conscientemente com a intenção de causar mudanças. Se percebo que um poema está muito ‘bonito’, mas politicamente incoerente, trabalho nele até que ética e estética façam jus uma à outra. Do contrário, não seria poesia. A literatura tem me distraído das minhas próprias dores (de classe, de gênero, de raça), me ajudado a organizar o caos e travar batalhas necessárias: quando leio, eu fujo, quando escrevo, enfrento. São duas estratégias de enfrentamento distintas, mas muito eficientes pra não enlouquecer na quarentena.

Tenho participado de web saraus, lives literárias e feito videopoemas. Fazer doer pra aliviar a dor. Destruir pra reconstruir. Mapear para subverter os caminhos. Escrever é dolorido, mas também é um ato libertador. E desejo um mundo em que minha identidade de escritora periférica não esteja atrelada a situações de violências cotidianas e à desigualdade econômica. Um mundo em que adjetivos de raça, classe, gênero e orientação sexual não precisem acompanhar a palavra literatura”.

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Laura Beatriz

Mineira de Contagem, Laura descobriu na palavra sua arma de defesa e usa cada vírgula do texto pra despertar sentimento.

“No início, buscava manter as escritas escondidas porque, de alguma forma, elas falam sobre mim, minhas visões e meus sentimentos. Percebo que os jovens negros, na maioria das vezes, não entendem o porquê de terem a sua cor marginalizada. Notei que as pessoas possuem certa rigidez a assuntos ligados à comunidade, mas percebi que, ao tocar nos pontos sensíveis, era possível ter mais discussões e mudanças. Foi quando comecei o projeto Dandara: a face escondida de toda mulher. É onde revelo as diversas facetas femininas, o sentimento de abandono paternal, a solidão da mulher, a criminalidade, prostituição, abuso infantil. O nome Dandara faz menção à esposa de Zumbi. Alguns escritores limitam seu papel como se ela só exercesse o de cônjuge, mas ela foi responsável por ajudar em diversas táticas de sobrevivência e é forte se dizer que ela ocupava espaço de mãe, esposa e guerreira. Digo, com toda certeza, que toda mulher carrega em si um pouco de Dandara.

O ambiente escolar é um grande reprodutor de comportamentos racistas. As crianças negras periféricas são alvos de piadas racistas e até exclusão por parte dos outros alunos. Escrevo contos, poemas, poesias e me atrevi escrever romances que ainda são guardados a sete chaves. Nada adiantaria falar sobre temas periféricos e a comunidade ter dificuldades para se enxergar naquele personagem. Não escrevo para mim, e sim para que a dor, que de alguma forma é silenciada, possa ter voz e gritar pedindo liberdade. As Negras Crônicas são publicadas por uma editora carioca e meus artigos por editora mineira. Ainda há uma dificuldade para se conseguir um espaço de disseminação. Tenho me valido da literatura como forma de manter a saúde mental e encorajando a lutar com a palavra em punho”.

Nina Rizzi

Ainda que tenha nascido em Campinas (SP), morado quase toda infância na zona rural e ter sofrido uma influência enorme dessa geografia, é em Fortaleza que Nina se sente mais pertencente.

“A infância implica diretamente as minhas primeiras escritas. Brincava muito sozinha nos pastos, rios e com os animais da fazenda aonde meus pais eram caseiros. Como não tinha colegas, quando precisava conversar pegava lá umas folhas de papel e escrevia, escrevia, escrevia, contando coisas, segredos, sonhos, medos... E com a descoberta da poesia entendi que essa escrita podia ultrapassar o diário, que hoje ainda escrevo. Foi com poemas que aprendi que poesia não é uma coisa que está distante de nós – guardada em livros inalcançáveis que ninguém entende –, mas que pode ser feita com o prosaico, e matéria de poesia é tudo, é o mundo, são as pessoas, é a vida, sou eu! Tenho 6 livros publicados por editoras independentes e 2 obras traduzidas. Em meus poemas, quando escrevo sobre amor ou erotismo, é um gesto político. Uma mulher falar sobre seus desejos, quando tantas outras foram proibidas de aprender a escrever para não escrever cartinhas a pretendentes, é um ato político.

Participo em Fortaleza do sarau da B1 e do Pretarau - Sarau das Pretas, um coletivo de mulheres negras poetas e slammers que surgiu em 2019 da necessidade de ter um espaço voltado para a celebração de nossos poemas. Somos em 11 mulheres hoje. Fazemos ações formativas, rodas de conversas, oficinas e debates para jovens mulheres escritoras. O principal valor e a missão é protagonizar mulheres poetas negras, especialmente as pretas que vivem e resistem na periferia. Literatura salva!

São inúmeras as pessoas que, ao começar a ler, escrever, recitar, participar de um sarau, mudam o seu olhar, suas referências e seus heróis. Percebe as cadeias que lhe prendem, se movimenta e movimenta o mundo consigo. Não são raras as pessoas que começaram a participar do sarau, fazer seus versos e viram pra si um futuro melhor que o pré-estabelecido por jornais sensacionalistas. Quero para a nossa literatura que nos libertemos das gavetas: que nunca mais engavetemos nossos poemas, nossos textos. Que tenhamos a certeza que o que escrevemos é, sim, literatura! E vamos publicar, quer o cânone, a grande imprensa, a crítica, as grandes casas editoriais ou não. Nossas vozes importam!”.

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Lilia Guerra

Começou a escrever na infância, mas foi só quando soube a identidade e o paradeiro do pai que colocou pro mundo o que, até então, era dela. Essa história se transformou no primeiro livro de Lilia, "Amor Avenida". 

“Aos dez anos, me mudei para o Conjunto Habitacional Cidade Tiradentes, na periferia de São Paulo, onde moro até hoje. Escrevo sobre esse cotidiano. Sobre as dificuldades com transporte, moradia, emprego, as ruas com iluminação deficiente, a fila do posto de saúde… Passaram-se mais de três décadas e pouca coisa mudou. Trabalho com saúde pública. As experiências que vivo atuando também resultam nos textos em que procuro expor a realidade. Uma maneira de tentar fazer com que o leitor consiga vivenciar e refletir.

Mas meu maior desejo mesmo é despertar o hábito e o prazer da literatura num público que, em geral, não é estimulado. Minha literatura é uma ferramenta de alcance, senão de mudança. Minha voz é a realidade que enfrento todos os dias. A marca que tento imprimir ilumina os perfis dessa gente que passa despercebida, mas que não apenas sofre. O povo que se transforma em personagem quando escrevo ama, sente ciúme, se diverte, pratica esporte, desenvolve habilidades.

Eu libertei meus arquivos na quarentena como forma de intervenção artística. A literatura tem sido o meu apoio. Trabalho num setor essencial, enfermagem. Não dá pra ficar em casa. Na minha bolsa nunca falta um livro. No ônibus, no trem, na hora dos intervalos no trabalho. Ler um trecho revigora, restaura as forças. Alterno a leitura com a escrita. Anoto coisas que tenho visto, ouvido, sentido. Fazer isso ajuda. Tem dias em que me sinto enfraquecida, mas sei que os leitores estão ali, aguardando a publicação. Isso me fortalece”.

Elizandra Souza

Começou escrevendo diários na adolescência até que, em 2001, resolveu poetizar. Criada no interior da Bahia, Elizandra voltou para São Paulo, sua cidade natal, e entrou no time de escritores do Fanzine Mjiba no bairro do Grajaú.

“Em 2004 conheci o Sarau da Cooperifa, do qual faço parte. Lá é meu santuário, minha referência literária. Frequentava todas as quartas-feiras e passei a escrever mais para não repetir poemas. Costumo dizer que é uma gentileza recitar um poema, já que recebemos, em uma única noite, mais de 50 poemas. A maior parte da minha produção e o reconhecimento está na poesia, onde eu me sinto segura, confortável, potente. Tenho dois livros autorais publicados e, recentemente, publiquei o primeiro de prosa. Sou ativista das lutas relacionadas a gênero e raça/etnia. Militante para a difusão da literatura negra feminina, sempre penso em projetos que possam agregar mais escritoras negras, pois em muitas ações culturais as mulheres negras são invisibilizadas. Agindo em coletivo, podemos conquistar mais oportunidades. Um dos meus princípios é transformar mesas e encontros literários, que mais de uma escritora negra possa estar na mesa.

A publicação em livro ainda válida se você é ou não uma escritora. É como se fosse um certificado, mas eu acredito que a palavra é livre. Os saraus e os slams são baseados na oralidade e na performance. Criei um coletivo, que é a editora Mjiba, palavra que significa jovem mulher negra. A princípio era um festival de arte negra protagonizado somente por mulheres negras, que acontecia no CEU Três Lagos, região do Grajaú. Paramos um pouco quando entrei na universidade – sou formada em jornalismo pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelo Prouni, com cotas raciais. Me sinto engajada e todas as minhas ações são para que as iniciativas sejam vistas e que mulheres negras possam partilhar desse espaço de fruição e de convites para mostrar seus trabalhos. Criei um projeto no Instagram, o @literaturanegrafeminina, e abri um chamado para que as seguidoras pudessem enviar suas poesias de autocuidado. Recebemos 40 textos. Um poema por dia”.

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Mika Andrade

Nascida em Quixeramobim, interior do Ceará, hoje mora em Fortaleza. Mika começou a escrever na adolescência com diários, sempre para fugir da solidão. Era tudo sem pretensão.

“Escrevo sobre o que me atravessa da literatura marginal à erótica. Pra ter voz e para desabafar sobre o que me angustia. Minha voz é o registro das minhas experiências, das situações que me atravessam. Falo pouco, então escrevo. Publico poemas no Instagram e textos mais longos no meu blog. Estou em dois coletivos, Bora Cronicar e Pretarau, e tenho publicações também em portais de literatura, zines e antologias. Sou autora das zines Alguns Versos Pervertidos e Outros Indecorosos e Devoção e de dois livros de poemas. No ano passado saiu O Olho de Lilith, uma antologia de poemas eróticos escritos por poetas cearenses organizada por mim. 

A gente é negligenciado pelo Estado. Tem que resistir e passar por cima do sistema idealizado e programado para nos esmagar. Tem que confrontar o restante da sociedade e a violência institucionalizada por ela. É preciso se impor diariamente e mostrar o significado da nossa existência, e isso faço com a literatura. Minha escrita é o lar dos abandonados, dos esquecidos. Agora e sempre. Minha vontade é que nossa trajetória seja contada nas escolas como forma de ensino e inspiração para as garotas, que autoras negras e periféricas como Carolina Maria de Jesus se tornem referências e sejam estudadas e admiradas. Que a gente tenha nosso trabalho reconhecido e pago, pois só visibilidade não paga conta e nem mata fome de ninguém”.

Bruna Mitrano

Na infância ela só conhecia um livro: a Bíblia. Começou a escrever bem mais tarde, quando surgiram os blogs. Desde que se conhece por gente, Bruna mora em Senador Camará, Rio de Janeiro, área considerada "de risco" pela Prefeitura por causa da forte presença do poder paralelo.

“A minha avó era lavadeira, analfabeta. A minha mãe até ontem vendia água e suco no sinal de trânsito. Não tive incentivo à leitura. Usei o blog para expurgo e abracei uma escrita do surto, meio esquizo. Alguém que me lia – havia uma troca bacana entre os blogueiros – disse “isso não é loucura, é poesia” e eu acreditei. Demorei, no entanto, a ter coragem para escrever em versos. Eu pensava que, se quebrasse linhas – algo aparentemente simples, mas que, na minha visão de quem morava onde Escritores com E maiúsculo nunca pisaram, separava os pobres mortais dos deuses poetas –, estaria invadindo um espaço que não era meu. E não era mesmo. Eu tive que chutar a porta. No Brasil, muito do que deveria ser direito de todos (educação, cultura, etc.) é privilégio de poucos. Na literatura, ou melhor, na cena literária, não é diferente. Em 2016, graças à editora Patuá, publiquei o livro Não, que teve uma boa repercussão e foi adquirido por bibliotecas públicas nos EUA. As publicações mais recentes estão na revistas Piauí, Cult e Palavra.

Toda literatura é ferramenta de transformação social. Toda escrita é política, porque é um lugar de voz. E a minha não só é política como é panfletária. Escrevo na e sobre a periferia, inclusive a do corpo, como território e, portanto, espaço de exclusão. Não escrevo para uma crítica especializada, mas para a Dona Teresa, analfabeta, que vive de restos de feira; para o Zé Formiga, analfabeto, catador de latinhas; para a Dona Neia, analfabeta, que trabalha no cafezal. Desejo o diálogo direto. Não acredito na divisão entre artista e público. Somos todos ‘público’. A minha escrita é ferramenta de transformação social porque não poderia deixar de ser. Porque o meu corpo é. A poesia, para além dos poemas, está nas imagens, nos sons, no toque, nas coisas e no próprio corpo, no reconhecimento de uma geografia íntima, enfim. O confinamento, para mim, tem sido um período de introspecção.

Tem muita coisa engasgada, muita coisa que precisa ser gritada ainda. Ainda que eu esteja produzindo pouco, a poesia, há muito, se fundiu ao meu ser social. Toda a minha ação é poética e toda a minha poética é ação. Nos últimos anos, li, declamei e expus poemas em vários eventos culturais na comunidade em que vivo. A forma mais eficaz de violência é o silenciamento. E este predomina nas favelas. Cabe a nós, artistas periféricas (os), lutar para desbancar a narrativa hegemônica e construir a nossa própria. Meu desejo é que a literatura ‘periférica’ não seja periférica, seja literatura”.

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Luna

Escrevia diários quando pequena para contar o que acontecia na escola. As conversas eram com ela mesma. Mas foi pela escrita que conseguiu se fortalecer. Moradora de Recife, em Pernambuco, Luna combina sua origem sertaneja com a ancestralidade afro indígena e faz poesia.

“Na adolescência, conheci o grupo Cordel de Fogo e fui participar, declamando poesias no Sertão do Pajeú, interior de Pernambuco, por volta dos 15, 16 anos. Uma região conhecida pela tradição da cantoria de viola e pela poesia falada e improvisada. Só próximo dos meus 20 anos é que passei a assinar minhas recitações, recitar poemas autorais. Não me sentia confiante num ambiente majoritariamente masculino. Comecei declamando literatura de cordel, depois passei a escrever meus cordéis, décimas, sonetos. Enquanto amigas e amigos iam para festas, boates, bares, eu ia atrás de microfone pra dizer poemas. E foi com o projeto Agente da Palavra que eu entendi o poder da poesia. Esse projeto me levou a várias comunidades periféricas das cidades do interior para declamar nas ruas, calçadas. Já disse em salão de beleza, supermercado, igreja, clínica de reabilitação, hospitais. Já entrei na casa de muita gente que eu nem conhecia pra dizer poesia. Também em escolas, colônias penitenciárias. Esse projeto me fez entender que poesia é a vida e se tornou minha forma de abraçar e amar as pessoas. De me comunicar e de existir. A partir daí eu tive certeza que a minha vida tinha sentido, tinha seta e direção. 

Lancei meu primeiro livro, Aquenda - O Amor Às Vezes É Isso (finalista do Prêmio Jabuti 2019), aos 26 anos, pelo selo LIVRE (SP), de Marcelino Freire e Vanderley Mendonça. Minha poesia foi tomando forma e corpo nesse lugar que sempre foi a rua e isso me ajudou a entender como a estrutura hegemônica opera, como nos subalternizou e continua nos subalternizando. Consequentemente se tornou engajada, minha forma de fazer militância, de ajudar e de fazer 'vingança' também por tudo que passamos há tantos séculos nesse país. Falo da ancestralidade, da nossa história silenciada e invisibilizada nesse Brasil. Também quando falo para a branquitude em grandes festivais literários. Estou o tempo inteiro fomentando nosso discurso contra-hegemônico.

E agora estou com o projeto ‘Meu mundo quarto’ e proponho uma intervenção: me conta a tua história que eu te escrevo um poema. Nesse momento de pandemia e isolamento, muitas pessoas vêm sofrendo diversos transtornos emocionais e sabemos que o silêncio adoece, mas a escuta cura. Portanto, como uma forma de acolher afetivamente as pessoas e o que elas têm sentido nesse momento, tenho marcado horários para conversas e a partir disso tenho transformado os depoimentos recebidos em poemas. Acredito na poesia como cura”.

Créditos

Imagem principal: João Pinheiro e Sirlene Barbosa

João Pinheiro é artista visual e autor de histórias em quadrinhos. Tem colaborado com diversas revistas, jornais, editoras, produtoras de vídeo e agências de publicidade. Ao lado de Sirlene Barbosa, é autor de CAROLINA (Veneta, 2016), HQ sobre a escritora Carolina Maria de Jesus, que ilustra esta matéria. O trabalho foi indicado ao prêmio Jabuti e ganhador do prêmio ecumênico do Festival de Quadrinhos de Angoulême 2019, BURROUGHS (Veneta, 2015), lançado também na Turquia e na França, e KEROUAC (Devir, 2011). Sirlene Barbosa é doutoranda em Educação, na USP, professora de língua portuguesa, na Prefeitura de São Paulo, e autora da HQ Carolina!

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