“A imperfeição é libertadora”

por Letícia González
Tpm #127

Francisco Bosco fala sobre narcisismo, casamento e um pecado virtual contemporâneo: o uso exagerado do ponto de exclamação

Autor do recém-lançado Alta Ajuda (ed. Foz), o filósofo e ensaísta Francisco Bosco fala sobre narcisismo, casamento e um pecado virtual contemporâneo: o uso exagerado do ponto de exclamação

Tpm. Principalmente nos perfis virtuais, tem muita gente fingindo que só existem dias felizes, amor, amigos, champanhe... Você também tem essa percepção?
Francisco Bosco. Em boa medida tenho sim. Toda cultura elege determinados valores ao posto de desejáveis. Quem encarna esses valores (ou finge encarná-los, não importa nesse momento) torna-se, portanto, desejável. Que as pessoas publiquem insistentemente essa imagem de si evidencia que vivemos numa cultura do eu. É isso o que mais me chama a atenção: a dimensão onipresente do registro do eu na vida das pessoas. As pessoas (e me incluo nisso em certa medida) passam a maior parte de suas vidas lutando pelo reconhecimento do outro. A ausência aí é a do registro impessoal: ler o livro de um filósofo, ouvir ou compor uma canção, dançar, jogar futebol, usar drogas, meditar, orar etc. É claro que tudo isso é feito em abundância no mundo, mas muitas vezes isso tem que retornar ao campo do eu imediatamente, sob a forma de anúncio. Então a pessoa chega numa festa e, em vez de dançar, posta uma foto dela dançando. Faz uma canção, mas emprega seu tempo muito mais em promover a canção – logo a si mesmo – do que em aprimorá-la.

Isso faz lembrar um dos seus textos sobre o imperativo do gozo. Sim, tem a ver. A cultura hoje manda gozar, e quem não está gozando não é desejável. Mais uma vez, a pergunta é: por que a necessidade permanente de ser desejável? Vê ligação disso como o narcisismo? Sim. Entendo que o narcisismo é um processo em que o sujeito tenta fazer sua imagem corresponder a um ideal. O narcisista é aquele que tenta arduamente corresponder a um ideal e sofre intensamente com as defasagens entre sua imagem e esse ideal. Não vejo nisso apenas uma fonte de sofrimento, mas também uma fonte de crescimento. O narcisismo empurra o sujeito para a frente, exige que ele se supere. Então, o narcisismo, por si só, me parece um veneno-remédio, bom e ruim ao mesmo tempo. O problema está no seguinte: qual é o ideal que impulsiona esse narcisismo? Aqui entramos numa questão de valores. Um artista e um BBB podem ambos ser narcisistas, mas os ideais que os movem são bem diferentes.

Você já escreveu sobre a própria adaptação à linguagem do Facebook. Ainda tem momentos de incômodo? Eu nem deveria falar isso, porque mais uma vez vou acabar sofrendo as consequências do que digo, mas é interessante notar a vulgarização do afeto pelo uso irrestrito dos pontos de exclamação. Qualquer mensagem, por mais simples – e sobretudo se for bem simples –, deve vir com um ponto de exclamação ao final: “Beijos!”, “Saudades!” etc. No mundo das cartas manuscritas, e mesmo no mundo dos e-mails, havia uma dedicação maior ao outro. O afeto pelo outro era manifestado pelo próprio tempo, tempo de escrever e compreender, de produzir um sentido para aquela relação. Tudo isso foi compactado pelo ponto de exclamação, que permite declarações de afeto no atacado. Há nisso algo de verdade – a exclamação como expressão de um afeto puro, sem conteúdos –, mas há também algo de uma pressa, de uma indistinção, de um barateamento que desmente a intensidade do afeto. Enfim, acabo de arrumar um problema pra mim.

Você é jovem, casado com a roteirista e colunista da Tpm Antonia Pellegrino, pai de família. Se sente pressionado a compartilhar o que, para muitos, é uma vida perfeita? Não. Por um lado faz parte do meu narcisismo – do meu ideal – uma postura mais discreta. Acho cafona a exibição ostensiva de si. E também invasiva, pois me irritam as pessoas que querem empurrar seus narcisismos em cima dos outros. Além disso, sou profundamente engajado na tentativa de desmontar essas ideias de perfeição. A começar pela ideia de casamento. Nos momentos em que tento sustentar a perfeição, é o pior de mim que está se manifestando. A imperfeição é que é libertadora.

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