Há algo político em Carolina Ferraz viver uma trans no cinema

por Amara Moira

Amara Moira, travesti, escritora e prostituta, escreve sobre o filme ”A Glória e a Graça”, protagonizado pela atriz

Quem assiste apenas ao trailer de A Glória e a Graça, do diretor Flavio Ramos Tambellini, pode ficar com uma impressão errada: a de que a escolha de Carolina Ferraz, uma mulher não-trans, para interpretar o papel da travesti Glória, a protagonista, é ruim. 

O que quero dizer é que, para conseguir convencer o público em poucos minutos de um trailer que uma atriz famosa cisgênero pode ser, na dramaturgia, uma mulher trans, precisaram reunir ali as cenas mais caricatas onde ela afirma essa identidade. Mas o filme não é o trailer e parte considerável dessas passagens são, inclusive, as mais desinteressantes.

Teria sido mais fácil dar o papel a um ator não-trans, um Rodrigo Santoro da vida, e reafirmar essa ideia nociva de que travestis são homens de saia e batom. Mas penso que a produção quis que essa escolha fosse também política e insinuasse, nas entrelinhas, a verdade que só a custo começa a se fazer ouvir: travestis são mulheres.

Fica a questão de por que Glória é vivida por Carolina Ferraz e não Carol Marra, atriz transexual que faz Fedra, sua melhor amiga, ou a travesti Marjorie Machi, também no elenco. Mas o significado político de ver uma personagem travesti lindamente interpretada por uma mulher não-travesti, além do fato de existirem outras pessoas trans em papeis de destaque, me faz gostar do resultado.

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O longa começa com Graça, mãe solo de uma menina de quinze anos e um garoto de oito, descobrindo que tem um aneurisma fatal e precisando ir atrás de Luiz Carlos, irmão com quem brigou quinze anos antes e que nunca voltou a ver, para garantir que seus filhos não fiquem desamparados. No reencontro, descobre que o irmão agora é Glória, travesti poliglota dona de um badalado restaurante no Rio. O choque inicial, os ressentimentos pela briga (que só será esclarecida no fim) e as pequenas e dolorosas transfobias vão acompanhar todo o processo de reaproximação entre Glória e Graça.

É um filme sensível, capaz de humanizar a figura da travesti e ao mesmo tempo mostrar as tantas violências que permeiam nosso dia-a-dia, a solidão afetiva, as agressões, a objetificação dos nossos corpos, o medo de se abrir para quem não sabe o que a gente vive, o tempo todo ter que estar preparada para ver alguém te chamando pelo nome de nascimento, te tratando como fraude, má influência pra crianças, falando do seu genital. Muito delicada, aliás, a forma como a narrativa sugere a leitura oscilante que outros personagens fazem de Glória ora como mulher trans (e então o nojo e a desconfiança ficam nítidos), ora como mulher não-trans (e aí nenhum sinal de hostilidade transparece).

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Glória não representa a esmagadora maioria das travestis brasileiras, mas é possível imaginar que seu passado tenha muito em comum com o dessa maioria. Querer contar a história dessa específica travesti, empresária bem sucedida, branca, falante de cinco idiomas europeus, parece querer afirmar que travestis podem, sim, ser o que quiserem, ocupar a sociedade toda, ter emprego, família, ser mães, mas há sempre o risco de essa escolha trazer junto uma defesa da meritocracia, do "basta se esforçar e você consegue".

Considero um trabalho cuidadoso ao retratar os dramas da comunidade trans (e, nisso, parece que foi bem assessorado). Esperemos que colabore com a transformação do olhar que a sociedade tem para com as travestis, mas também que ajude a afirmar cada vez mais a importância de sermos protagonistas na construção das narrativas que falem de nós.

Vai lá: A Glória e a Graça chega aos cinemas dia 30 de março.

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