Realizada com seu primeiro disco, a cantora Tiê anda na contramão das novas musas da MPB
Santiago, 15 de janeiro de 2006. Passava das dez da noite e lá fora as ruas da capital chilena eram tomadas pelas comemorações da primeira mulher eleita presidente do país. Enquanto Michelle Bachelet discursava, numa casa de shows no centro da cidade Tiê ia perdendo a voz. Ardia em febre. Quarenta graus. Seu corpo era tomado por uma dormência que cerrava os olhos e desafinava as notas. Ela abandonou o palco antes do bis. Para só voltar dois anos depois.
A brasileira embarcou para seu país deixando o compositor Toquinho sem voz de apoio. Era o segundo ano que Tiê o acompanhava em turnê. Estava feliz. Fazia duas entradas solo durante os shows e era a primeira vez que ganhava um fixo. Motivara-se, enfim, a virar cantora. Mas a febre não passava. Um, dois, três dias. Duas semanas. Consultas, exames, incertezas... “Foi uma porrada ouvir, aos 26 anos, que podia morrer”, lembra ela. “Não saber o que ia acontecer, bem no momento em que pensava se minha carreira daria certo...” A tomografia apontou um tumor no pulmão.
“É ruim falar de doença”, preocupa-se. “Mas foi um processo incrível. Depois de tudo isso comecei a compor.” Tiê foi submetida a uma cirurgia de emergência quando não tinha mais força nem para comer. “Estava verde”, conta. O tumor era benigno e o diagnóstico, um possível lúpus – doença autoimune. “A conclusão é que tenho um sistema imunológico fraco.” Por isso, brinca que não seria uma cantora junkie: “Não posso encher a cara, eu mesma preparo minha comida e nado 2 mil metros todo dia”, lista ela, que levou seis meses para se recuperar.
LADO OPOSTO
Durante o mergulho involuntário pra dentro de si, Tiê gerou seu disco de estreia, Sweet Jardim. As letras, confessionais, são acompanhadas por uma batida folk. A faixa “Chá-verde” remete à época do tratamento, quando ingeria litros da bebida, indicada pelo acupunturista chinês. “Era estressada e insegura. Aprendi a ter paciência e comecei a gostar do que compunha. Se aquilo fosse verdade pra mim, alguém no mundo ia gostar”, revela.
Antes de perceber a vocação para compor, Tiê, além de cantar sambas antigos na banda de Toquinho, “toda comportada”, também subia no palco do clube Vegas com o projeto Cabaret, em parceria com o produtor Dudu Tsuda – tecladista do Pato Fu e integrante da banda Trash Pour 4. Semanalmente, a dupla animava a casa com performances: “Eu cantava de maiô e cartola, de cinta-liga”. Por mais que se divertisse na noite e visse a carreira se profissionalizar com Toquinho, ela queria trilhar seu caminho. Hoje, conclui: “Todos os personagens que criei eram para me proteger de alguma coisa. Esse disco é o oposto disso, é o íntimo do íntimo”. Entre as intimidades está “Passarinho”, na qual revela o porquê de seu nome. Na letra, confessa que “já quis ser Maria”.
Tiê, que “nasceu com nome artístico”, foi criada no bairro paulistano de Perdizes e por pouco não cresceu em meio aos índios. Isso caso sua mãe tivesse dado à luz no Parque Indígena do Xingu, no Mato Grosso. Antes de saber da gravidez, o pai optou por largar o consultório de odontologia para viver entre os índios. Mas a mãe decidiu: não teria a filha no meio do mato. Foi assim que ela nasceu longe do pai, e só conheceu o meio-irmão mais novo, “caçador e pescador”, na única visita aos dois, aos 19 anos. Mais tarde, do segundo casamento da mãe, Tiê ganhou outro irmão, Gianni Dias, também músico.
Foi grudada na mãe e na avó, a atriz Vida Alves – protagonista do primeiro beijo da TV brasileira –, que cresceu. Aos 12 anos, para ajudar nas contas, entrou na Ford Models. Estampou capas de Capricho, Querida, fez comerciais e passou duas temporadas no Japão. Na volta da viagem, aos 15, cansou: “Me deu um fastio, achei tudo um saco”. Fator decisivo foi a aparição de manchas brancas no rosto por causa do vitiligo (doença de fundo emocional que inibe a pigmentação da pele), atribuído à relação delicada com o pai. Hoje, aos 29, as manchas são imperceptíveis. “Assumi que não gosto de praia. Ia pra Ilhabela, enchia a cara de Hipoglós, enrolava um lenço na cabeça, parecia uma Madonna louca”, diverte-se.
A opção pelos palcos aconteceu quando a elegeram melhor cantora do Fico (Festival Interno do Colégio Objetivo), em 1997. Foram, então, anos de aulas de canto, mescladas com o curso de relações públicas na Faap, uma temporada em Nova York produzindo o BrasilFest (festival de música brasileira idealizado por Nelson Motta) e cantando em bares. “Essa época era sofrida, não sabia cantar, nada me satisfazia”, desabafa. Já no Brasil, reencontrou um caso antigo e, aos 21 anos, se casou – na igreja – com o músico Diogo Poças. Separaram-se em três anos, na época em que, com duas amigas, Tiê tocava o Café Brechó, um bar-loja em Perdizes.
Mas a cantora só foi se sentir cantora um ano atrás, quando, recuperada, caiu no Studio SP, casa de shows paulistana que vem se tornando uma vitrine de novos artistas. Tiê tinha um EP com quatro canções e nenhum direcionamento. “O show era um desastre. Cantava algumas músicas, dublava outras, trocava de roupa em cena, soltava perfume de alecrim, um circo”, lamenta. Um dos sócios da casa, Alê Youssef, alertou: “Você precisa ensaiar a banda, ter um bom produtor e, só depois disso, fazer o que quiser. Você é compositora, valoriza isso”. Tiê ouviu o conselho e, depois de três meses, entrou em estúdio e gravou Sweet Jardim, produzido por Plínio Profeta e patrocinado pelo Levis’ Music – projeto que apoia artistas estreantes. “O disco tem pequenos erros. Mas prefiro assim em vez de uma coisa plastificada.”
São Paulo, 4 de março de 2009. Passava das dez da noite e a casa estava lotada. Fila na porta. Apresentação de estreia de Sweet Jardim. Tiê não se abala com o zun- zunzum de quem estava ali só pela noitada. Era a primeira vez que subia no palco com repertório afinado e com a certeza de que tinha dado certo. No fim do show, sob aplausos – e depois do bis –, ela abandona os palcos. Para sempre voltar.
Estilo Rita Wainer / Maquiagem Juliana Gonçalves (Capa MGT)