Mara Gabrilli se hospeda em quatro lares diferentes - mas nem sempre se sente em casa
Estava no supermercado quando encontrei, no mesmo corredor, um cadeirante amigo meu, que trabalha no cruzamento da rua Estados Unidos com a avenida Nove de Julho. Enquanto festejávamos a coincidência do encontro e as cadeiras e os carrinhos se aproximavam, uma senhora apareceu por trás da gôndola e começou a gritar: “Olha a Constituição, olha a Constituição, dona vereadora. Tá achando que agora é tudo pra vocês, e a gente? Fala educadinha, dona vereadora, e a gente?”.
Como se eu fosse uma mal-educada que tirasse o direito de quem não tem deficiência. Eu, meu amigo e as outras pessoas no supermercado ficamos olhando essa mulher se afastar, reclamando sem parar numa espécie de surto.
Tenho assistido a repetidos comportamentos grotescos, que cheguei a questionar o meu próprio discernimento.
Na casa dos meus pais tem tido uma grande incidência dessa conduta, meio que perversa, a ponto de eu não conseguir ficar hospedada lá enquanto meu apartamento está reformando. O que é isso que empodera as pessoas de uma missão fantasiosa de semear a discórdia? Será que isso se manifesta quando elas têm muito medo de tudo aquilo que não são?
Aonde vou esta noite?
Já não é comum para qualquer pessoa morar a cada três dias num lugar. Para uma tetraplégica cheia de equipamentos e assistentes, é menos usual ainda.
Comecei revezando entre a casa de duas amigas: uma durante a semana e a outra nos fins de semana. Passei por quatro lugares diferentes este mês e escrevo este texto enquanto passo uns dias num hotel. Isso é ótimo, pois, mesmo estando em São Paulo, me dá a sensação de estar viajando.
Tem sido a ousadia do desprendimento. Comunicar meu novo endereço a motoristas, assistentes e assessores e transportar uma bola gigante de fisioterapia, bicicleta de braço com mesa e cadeira específica, acessórios de banho de banheira, roupas, cosméticos etc. chega a ser engraçado, além de trabalhoso.
Quando saio do brusco impacto momentâneo de não saber aonde irei dormir à noite, a desconstrução do cotidiano vira intensidade e valentia.
Levei também o Tuiuiú, meu pug, a um hotel de cachorro. Cheguei para visitá-lo e ele estava pilhado, feliz, brincando com a Marcelinha.
Hoje a Pá lembrou que a minha casa de boneca da Barbie tinha três andares e elevador. Será que a gente sempre foi o que a gente é hoje? Escada em casa de boneca não tem graça.
A harmonia de uma casa está na afetividade de quem recebe.