Zuenir Ventura volta a escrever sobre o ano que não terminou para tentar entender quais são os principais legados do espírito de 1968
Passeata dos 100 Mil, no Rio de Janeiro, um dos marcos de 68
POR GUILHERME WERNECK
Vinte anos depois do sucesso de 1968 - O ano que não terminou, o jornalista Zuenir Ventura volta ao que chama de um ano-personagem em 1968 - O que fizemos de nós. Os dois livros saem juntos agora na caixa 1968 (Planeta, R$ 74,90). Como no primeiro livro, o foco é a experiência brasileira, quando a coisa ficou feia pra valer nas ruas com o endurecimento do regime militar. "No Brasil, ao contrário dos outros países, foi mais o movimento político, que começa com a morte do [estudante de 16 anos] Édson Luís. É o ano do AI-5 [ato institucional do regime militar que restringiu ainda mais os direitos civis]. O AI-5 só é revogado em 78, a ditadura acaba em 85 e só vamos ter eleições diretas em 89", diz. A contraposição é sobretudo com o Maio de 68 parisiense, quando os estudantes foram às ruas e entraram em confronto com a polícia reivindicando dormitórios mistos nas universidades. Mesmo com o Brasil em primeiro plano, o livro não deixa de dialogar com as experiências da França, da Tchecoslováquia e dos Estados Unidos, só para citar alguns dos países que tiveram um papel mais emblemático na época. "Foi o primeiro movimento global, foi globalizante avant la lettre. A cada dez anos, 68 volta de uma maneira diferente. E este pode ser o último ano de celebração", arrisca.
O que fizemos de nós é dividido em duas partes. Na primeira, tenta enxergar com os olhos de 2008 quais os legados daquele 68 que ainda ecoam na nossa história. Aí, temos três vertentes: a política, a revolução dos costumes e a cultural, o famoso desbunde. Na segunda parte, Zuenir trata desses temas em grandes entrevistas com figuras que estavam ebulindo há 40 anos: Heloísa Buarque de Holanda, Caetano Veloso, César Benjamin, Fernando Gabeira. Fernando Henrique Cardoso, Franklin Martins e José Dirceu. Dos legados de 68, os mais libertadores foram aqueles que revolucionaram os costumes: o feminismo, a questão do negro (embora esta venha pela via norte-americana) e da reorganização da família além da cultural. "Todo movimento musical ainda bebe naquela gera ção, que foi e ainda é extraordinária. O tropicalismo até hoje é matriz para o manguebeat, por exemplo", comenta.
Mas mesmo a revolução cultural tem o seu lado perverso, e, para Zuenir, o sonho de expansão da consciência de 68 virou o pesadelo do narcotráfico em 2008. "Você tem uma multinacional das drogas, o que é completamente diferente de 68. O traficante era um pé-rapado, hoje ele tem poder em todo o mundo, um poder globalizado. Isso não tem a menor graça, porque é só lucro e morte. E pior: a política de combate é tão desastrada. Nesse sentido, a droga é hoje um flagelo. Meu traficante, por exemplo, ele tinha uma ética, me chamava de senhor, de coroa responsa. Hoje acabou, o Tim [Lopes, jornalista assassinado em 2002 quando fazia reportagem sobre baile funk na favela Vila Cruzeiro, no RJ] foi o fim da relação de respeito. O traficante não tem nenhuma implantação na favela, vem de fora. Antes ele era criado ali, se preocupava em melhorar a comunidade."
A outra coisa que não saiu de acordo com os planos, segundo Zuenir, foi a vertente política, que, desde o primeiro governo FHC, levou ao poder os jovens de 68. "Para mim é a degeneração de 68 que se vê no poder. Sobretudo no último governo [Lula], é a traição ao patrimônio mais cultuado de 68, que era a paixão pela ética. Nunca tive partido, mas tinha grande simpatia pelo PT. Era uma adesão ética, votava porque não havia nenhum petista envolvido em escândalos. De repente, só tem escândalo. Eu acho, sem meias palavras, que nesse processo de chegada ao poder houve uma degradação do ideal de 68. E pragmatismo não pode ser álibi para sacanagem."
POR GUILHERME WERNECK
Vinte anos depois do sucesso de 1968 - O ano que não terminou, o jornalista Zuenir Ventura volta ao que chama de um ano-personagem em 1968 - O que fizemos de nós. Os dois livros saem juntos agora na caixa 1968 (Planeta, R$ 74,90). Como no primeiro livro, o foco é a experiência brasileira, quando a coisa ficou feia pra valer nas ruas com o endurecimento do regime militar. "No Brasil, ao contrário dos outros países, foi mais o movimento político, que começa com a morte do [estudante de 16 anos] Édson Luís. É o ano do AI-5 [ato institucional do regime militar que restringiu ainda mais os direitos civis]. O AI-5 só é revogado em 78, a ditadura acaba em 85 e só vamos ter eleições diretas em 89", diz. A contraposição é sobretudo com o Maio de 68 parisiense, quando os estudantes foram às ruas e entraram em confronto com a polícia reivindicando dormitórios mistos nas universidades. Mesmo com o Brasil em primeiro plano, o livro não deixa de dialogar com as experiências da França, da Tchecoslováquia e dos Estados Unidos, só para citar alguns dos países que tiveram um papel mais emblemático na época. "Foi o primeiro movimento global, foi globalizante avant la lettre. A cada dez anos, 68 volta de uma maneira diferente. E este pode ser o último ano de celebração", arrisca.
O que fizemos de nós é dividido em duas partes. Na primeira, tenta enxergar com os olhos de 2008 quais os legados daquele 68 que ainda ecoam na nossa história. Aí, temos três vertentes: a política, a revolução dos costumes e a cultural, o famoso desbunde. Na segunda parte, Zuenir trata desses temas em grandes entrevistas com figuras que estavam ebulindo há 40 anos: Heloísa Buarque de Holanda, Caetano Veloso, César Benjamin, Fernando Gabeira. Fernando Henrique Cardoso, Franklin Martins e José Dirceu. Dos legados de 68, os mais libertadores foram aqueles que revolucionaram os costumes: o feminismo, a questão do negro (embora esta venha pela via norte-americana) e da reorganização da família além da cultural. "Todo movimento musical ainda bebe naquela gera ção, que foi e ainda é extraordinária. O tropicalismo até hoje é matriz para o manguebeat, por exemplo", comenta.
Mas mesmo a revolução cultural tem o seu lado perverso, e, para Zuenir, o sonho de expansão da consciência de 68 virou o pesadelo do narcotráfico em 2008. "Você tem uma multinacional das drogas, o que é completamente diferente de 68. O traficante era um pé-rapado, hoje ele tem poder em todo o mundo, um poder globalizado. Isso não tem a menor graça, porque é só lucro e morte. E pior: a política de combate é tão desastrada. Nesse sentido, a droga é hoje um flagelo. Meu traficante, por exemplo, ele tinha uma ética, me chamava de senhor, de coroa responsa. Hoje acabou, o Tim [Lopes, jornalista assassinado em 2002 quando fazia reportagem sobre baile funk na favela Vila Cruzeiro, no RJ] foi o fim da relação de respeito. O traficante não tem nenhuma implantação na favela, vem de fora. Antes ele era criado ali, se preocupava em melhorar a comunidade."
A outra coisa que não saiu de acordo com os planos, segundo Zuenir, foi a vertente política, que, desde o primeiro governo FHC, levou ao poder os jovens de 68. "Para mim é a degeneração de 68 que se vê no poder. Sobretudo no último governo [Lula], é a traição ao patrimônio mais cultuado de 68, que era a paixão pela ética. Nunca tive partido, mas tinha grande simpatia pelo PT. Era uma adesão ética, votava porque não havia nenhum petista envolvido em escândalos. De repente, só tem escândalo. Eu acho, sem meias palavras, que nesse processo de chegada ao poder houve uma degradação do ideal de 68. E pragmatismo não pode ser álibi para sacanagem."