Uma vez acompanhei uma negociação para evitar uma guerra de facções no Complexo do Alemão. O chefe do tráfico falou: ”Vou invadir porque sou bandido, porra!”
Caro Paulo,
Acho que estamos vivendo uma era bem sem-vergonha. Mas não totalmente sem-vergonha, infelizmente. É verdade que as pessoas perderam a vergonha de ser elas mesmas. É uma libertação, sem dúvida.
Sou de uma geração pobre de opções de profissão, de fé, de estilo de vida, de roupa, qualquer variação fora do padrão era punida com marginalização, depois de passar pela chacota e pelo deboche. A gente tinha vergonha de não ser como devia ser e se sentia inferior por não saber se comportar, por não pertencer. Pior ainda quando esse padrão condenava a natureza das pessoas – mulheres, negros e gays – a uma categoria inferior... todo mundo queria ser branco e macho, se possível loiro.
Hoje é diferente: você pode ser loiro, preto, vermelho, amarelo, azul, rosa, listrado, budista, médico, alvinegro, quadriculado, crespo, surfista, liso, cristão, verde, cozinheiro, rubro-negro, advogado, até branco... porque hoje tudo pode, tudo é possível... somos livres para expressar o potencial de individualidade de cada um!
Eu vejo que vivemos uma época de afirmação de identidades e que aí está a verdadeira riqueza da sociedade, o que torna a vida mais rica, divertida e saudável. Mas ainda falta muito para a vergonha sumir do mapa porque ela continua como um mecanismo fortíssimo de controle social. Talvez ela tenha diminuído em ocorrência mas, quando acontece, vem com uma força muito maior, travestida de um direito ou um dever óbvios.
ONDE MORA O PERIGO
Explico com uma história real: algum tempo atrás eu subi o Complexo do Alemão com o José Junior, do AfroReggae, para assistir a uma negociação que ele ia fazer para evitar uma guerra entre duas facções em que poderia morrer muita gente inocente. No meio da conversa, o chefe do tráfico ficou muito impaciente por não encontrar razões suficientes que justificassem sua decisão de atacar a comunidade vizinha e gritou para o Junior seu último e definitivo argumento: “Vou invadir porque eu sou bandido, porra!”.
Isto é, ele não podia agir diferente do que um bandido agiria, era um dever, principalmente na frente de seus 12 companheiros que assistiam à negociação. Ele teria vergonha de não se comportar como um bandido! Em outras palavras, ele parou de pensar, se submeteu ao padrão e passou a justificar suas decisões pelo comportamento esperado e não pela consciência dele. É aí que mora o perigo. Porque, se a nossa evolução não for pela consciência, não será, com certeza, pelo controle social. Isso vale tanto para quem vive do vício como para quem vive da virtude. Principalmente destes últimos que têm o patrocínio oficial das instituições.
Que Deus nos livre da vergonha!
Abraço do amigo,
Ricardo
*RICARDO GUIMARÃES, 66, é presidente da Thymus Branding. Seu e-mail é ricardoguimaraes@thymus.com.br e seu Twitter é twitter.com/ricardo_thymus