Nada será como antes

por Lia Hama
Trip #243

Produtos como Uber, o polêmico aplicativo para transporte de passageiros, surgem num ritmo acelerado, abalando estruturas há muito estabelecidas. Afinal, que tipo de rupturas são essas a que estamos cada vez mais expostos?

A cena se repete em quase todos os lugares por onde passa o Uber: milhares de taxistas saem pelas ruas para protestar junto ao poder público contra o popular aplicativo de celular usado para conectar motoristas particulares a passageiros. Segundo os taxistas, o Uber é ilegal, pratica concorrência desleal e representa uma ameaça ao emprego de milhões de trabalhadores. No Brasil, manifestação semelhante ocorreu no início do mês passado nas quatro cidades onde o app está disponível: São Paulo, Rio, Brasília e Belo Horizonte. No dia 28 de abril, a Justiça de São Paulo concedeu uma liminar em favor do sindicato de taxistas do estado, determinando a suspensão das atividades do aplicativo no Brasil sob pena de multa diária de R$ 100 mil. Seis dias depois, a liminar foi revogada após o Uber recorrer na Justiça paulista.

Desde que foi lançado em 2009 em San Francisco, na Califórnia, o Uber se espalhou rapidamente pelo mundo: hoje são realizadas diariamente 1 milhão de viagens em 301 cidades de 56 países. Assim como no Brasil, o serviço provocou forte reação e foi suspenso em lugares como Espanha, Alemanha e França. A chegada ao mercado brasileiro ocorreu há um ano, primeiro no Rio de Janeiro, por conta da Copa do Mundo. Com valor de mercado de US$ 45 bilhões, a empresa é a segunda start-up de tecnologia mais valiosa do planeta, atrás apenas da fabricante chinesa de smartphones Xiaomi, também preparando para breve seu desembarque no Brasil.

Os números arrasa-quarteirão são típicos do que os especialistas em tecnologia e em empreendedorismo chamam de produtos e serviços “disruptivos” – ou seja, que abrem novos mercados e acabam por desestabilizar setores inteiros da economia. “Para ser disruptivo, não basta ser uma melhoria, tem que romper com o padrão existente. É algo que fura a fila. O Uber é disruptivo porque não é táxi, é outra coisa: uma plataforma de tecnologia que conecta motoristas particulares com usuários sem passar pelo intermédio do poder público. É um passo que vai além dos aplicativos usados pelos taxistas, como o Easy Taxi ou o 99Taxis”, explica Luli Radfahrer, professor de comunicação digital da ECA-USP, consultor em inovação digital e colunista de tecnologia do jornal Folha de S.Paulo.

A princípio, qualquer pessoa com carteira de motorista profissional e um carro sedan de luxo na garagem pode se candidatar a ser um motorista parceiro do Uber, fazendo bicos para ter uma renda extra. No Brasil, por enquanto, o único produto oferecido pela plataforma é o UberBLACK, serviço que possibilita aos usuários solicitarem carros do tipo sedan, com motoristas – os modelos mais usuais são Toyota Corolla, Ford Fusion e Volkswagen Jetta.

"Para ser disruptivo, não basta ser uma melhoria, tem que romper com o padrão existente. É algo que fura a fila"

Basta o motorista pagar uma taxa de 20% por corrida para a empresa e preen­cher os requisitos (é necessário fazer um cadastro no site do Uber e então passar por uma checagem de informações e antecedentes criminais; o candidato precisa também ter um carro modelo sedan de luxo, com banco de couro e ar-condicionado; e os veículos devem ser novos e contar com seguro que cobre o passageiro e o motorista). O motorista Fábio Luiz Marques Santos, 44 anos, que atende pelo Uber desde janeiro, afirma que seus ganhos líquidos – entre as viagens que faz via aplicativo e os bicos que realiza como motorista particular – somam R$ 2 mil por semana. “Trabalhando sete dias por semana, consigo ganhar mais do que na época de carteira assinada”, diz. Antes do Uber, Santos fazia transporte executivo, atendendo artistas, empresários e políticos.

A questão é que em muitos países, como o Brasil, o transporte remunerado de passageiros só pode ser realizado por taxistas, que recebem uma licença do governo para isso. Na cidade de São Paulo, a licença, que era entregue gratuitamente aos primeiros taxistas, deixou de ser fornecida quando o número de carros atingiu patamar considerado limite – há mais de 57 mil motoristas cadastrados na prefeitura paulistana, no entanto a administração só disponibiliza 33 mil alvarás. Isso gerou um mercado paralelo de aluguel e venda de autorizações, que chegam a custar, de acordo com levantamento de 2010, mais de R$ 150 mil em locais como o aeroporto de Congonhas, em São Paulo.

Segundo os taxistas, os motoristas do Uber roubam o trabalho deles, ao oferecer um serviço clandestino e não pagar impostos. “Ninguém pode deter a tecnologia, mas o Uber é ilegal. Para exercer a profissão de taxista é preciso fazer um curso e receber um alvará da prefeitura e o Uber não faz nada disso. Se todo mundo chegar aqui e fizer o que quiser, vira um país sem lei. São Paulo tem a terceira maior frota de táxis do mundo, não tem mais espaço para mais táxis na cidade. Tanto que a prefeitura parou de conceder alvarás”, afirmou à Trip Natalício Bezerra Silva, presidente do Sindicato dos Taxistas Autônomos de São Paulo.

Era da disrupção

Ao longo da história, inovações disruptivas costumavam surgir de tempos em tempos. A diferença está na velocidade e na escala com que ocorrem hoje. “Antes havia uma disrupção a cada 30, 40 anos. O rádio, por exemplo, surgiu no final do século 19; a TV só foi aparecer quatro décadas depois. Hoje, com as novas tecnologias, essas mudanças ocorrem de forma muito mais rápida e numa escala muito grande, desmontando o mundo como a gente conhece. Por isso elas são tão atordoantes”, argumenta Radfahrer.

"Com as novas tecnologias, as mudanças ocorrem de forma muito mais rápida e constante, desmontando o mundo como a gente conhece. Por isso elas são tão atordoantes"

Produtos e serviços disruptivos são cada vez mais comuns, e seus efeitos são avassaladores. Com sua plataforma de buscas, o Google mudou a forma como se vai atrás e se organiza a informação na internet. O Facebook redefiniu a maneira como as pessoas se relacionam dentro e fora da rede. A Wikipedia fez com que as enciclopédias se tornassem artigos raros, assim como o Waze praticamente aposentou os guias de ruas e até os aparelhos de GPS automotivos. O Netflix tornou obsoletas as locadoras de vídeo e abalou os serviços de TV a cabo, ao oferecer filmes e séries que podem ser vistos a qualquer hora, de qualquer lugar, pelo computador, tablet ou celular – entre nós, até o mais emblemático dos homens de mídia tradicional, Silvio Santos, disse, no ar, que usa o serviço. Ao permitir o aluguel de quartos e casas em mais de 190 países, o Airbnb (acrônimo de air bed and breakfast: colchão inflável e café da manhã) vem provocando terremotos nos setores hoteleiro e imobiliário.

O inventor do termo “inovação disruptiva” foi Clayton Christensen, professor de administração de Harvard e autor do livro O dilema da inovação, de 1997, que a revista britânica The Economist elegeu como um dos seis livros de negócios mais importantes já escritos. Christensen se inspirou no conceito de destruição criativa do economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950) para descrever os ciclos dos negócios. Segundo Christensen, mesmo quando as empresas fazem tudo certo – ouvem seus consumidores e investem pesado em tecnologia, por exemplo – elas podem quebrar com o surgimento de inovações disruptivas, que destroem um mercado antigo e criam um novo, como ocorreu com os telefones fixos com a chegada dos celulares. Desde então, Christensen se tornou um autor celebrado no mundo dos negócios do Vale do Silício. “Seja disruptivo e você será salvo” se tornou um mantra entre as start-ups de tecnologia.

Danos Colaterais

Em artigo publicado no ano passado na revista The New Yorker, “The Disruption Machine”, a professora de história da Universidade de Harvard Jill Lepore critica o uso indiscriminado do termo “disruptivo”, diz que o conceito só serve para estudar o passado, e não para antecipar o futuro, e aponta falhas nas previsões de Christensen, como quando ele disse que o iPhone seria um fracasso. Lepore lembra que cada época tem uma teoria sobre ascenção e queda, crescimento e decadência. “O século 18 abraçou a ideia do progresso; o século 19, da evolução; o século 20, do crescimento e da inovação. Nossa era é da disrupção”, diz a historiadora.

"Os efeitos colaterais dos novos modelos de negócios muitas vezes são a falência de empresas tradicionais, a demissão em massa e a precarização do mercado de trabalho"

Apesar de normalmente serem opções melhores do ponto de vista dos usuários, produtos e serviços disruptivos podem guardar em si alguns efeitos colaterais. Falência de empresas tradicionais, demissão em massa e precarização do mercado de trabalho são alguns deles. “Esse é o lado ruim e uma consequência inevitável do processo, já que as empresas no mercado passam a não ter condições de competir com as novas. Antes essas transformações eram graduais, agora são muito rápidas. E nosso cérebro não está programado para tantas mudanças. As empresas, a sociedade e os órgãos de regulação estão tentando reagir a esse processo, só que ele é muito rápido, cada vez mais rápido”, comenta Manoel Lemos, ex-diretor superintendente da unidade de negócios digitais da Editora Abril, atual sócio da Redpoint, empresa que faz investimentos em start-ups de tecnologia, e fundador do fazedores.com, portal focado no movimento maker.

Inovações disruptivas têm impacto nas mais diversas áreas, do mercado financeiro ao setor jurídico, do jornalismo às áreas de educação e saúde. Um relatório interno do jornal The New York Times que vazou no ano passado mostrou, de maneira exemplar, a luta do diário para se adequar ao mundo digital, com a concorrência de empresas como Buzzfeed e Huffington Post. “Disrupção é um padrão presente em muitas indústrias no qual empresas pequenas usam novas tecnologias para oferecer alternativas de produtos mais baratos e inferiores do que os vendidos por atores estabelecidos (pense na Toyota tomando conta de Detroit décadas atrás). Hoje um grupo de start-ups quer provocar uma disrupção em nossa indústria ao atacar seu principal representante, o The New York Times”, afirma o estudo sobre inovação feito pelo tradicional diário americano.

Na área de saúde, especialistas apontam que um produto que deverá abalar o setor é o computador Watson, da IBM, que entrou para a história da inteligência artificial ao derrotar os oponentes humanos no programa de auditório de TV Jeopardy, em 2011. “Ali, o Watson respondia a perguntas sobre conhecimentos gerais. Agora está sendo testado em larga escala em hospitais para responder a questões sobre doenças. Um usuário pergunta: ‘Estou com dor de estômago e minha cabeça está doendo. O que eu tenho?’. O médico tem que processar uma série de informações, que às vezes ele não tem, para responder. Já o Watson, com uma base de dados gigantesca, estará sempre mais atualizado do que o médico”, afirma o futurista Michell Zappa, fundador da Envisioning, consultoria especializada em descobrir tendências na área de tecnologia. Manoel Lemos destaca que com a ajuda do Watson os profissionais da saúde poderão atender um maior número de pessoas, já que muitas etapas do atendimento serão cortadas. “Agora, a relação do médico com o paciente continuará sendo fundamental. Tem coisas que não podem ser substituídas pela tecnologia”, pondera Lemos.

"Mesmo quando as empresas fazem tudo certo, elas podem quebrar com o surgimento de inovações disruptivas, que destroem um mercado antigo e criam um novo"

Como são novidade, serviços disruptivos não possuem uma regulamentação quando chegam ao mercado. É o caso do que está acontecendo com o Uber no Brasil. “Quando o Google e o Facebook chegaram ao país também não havia nada que regulamentasse os direitos e deveres das empresas de internet e dos usuários. Houve então um trabalho conjunto com a abertura de fóruns on-line, em que os usuários colocavam suas necessidades. Foi nesse contexto que surgiu o Marco Civil da Internet [lei que regula o uso da rede no Brasil, aprovada no ano passado]. A gente está trabalhando para construir o Marco Civil da Economia Compartilhada”, diz Guilherme Telles, diretor-geral do Uber em São Paulo, que está em contato com empresas de perfil semelhante, como o Airbnb. Nos EUA, o uso do aplicativo de transporte foi regulamentado em 26 jurisdições e proibido no estado de Nevada.

Ser ou não ser

O colunista da Trip Ronaldo Lemos, um dos principais responsáveis pela criação do Marco Civil da Internet, afirma ser imprevisível o que vai acontecer com o Uber por aqui. “Vai ser um caso importante de acompanhar, especialmente porque vai dizer muito sobre o ambiente de negócios no Brasil e sobre sua abertura ou não a modelos como este”, afirma o advogado e diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro.

Sobre a criação de um Marco Civil da Economia Compartilhada, Lemos acha que ainda é cedo para acontecer, já que a atividade ainda é pequena no país. “Agora, se crescer, é provável que haja iniciativas regulatórias. Muitas das empresas querem ser reguladas e pedem por isso. A visão delas é de que é melhor viver com a previsibilidade da regulação do que na incerteza sobre quais são seus direitos e responsabilidades.”

Em meio a tantas mudanças, que ocorrem em ritmo cada vez mais acelerado, o especialista em inovação digital Radfahrer recorre a um autor nascido no século 16. “Sofrer os dardos e flechas de um destino ultrajante ou levantar os braços contra um mar de problemas, se opondo a eles e vencê-los?”, escreve Shakespeare, em seu Hamlet. Segundo Radfahrer, a resposta para um problema colocado pela tecnologia, em geral, é mais tecnologia. “Você pode fugir para o mato, fechar os olhos e fingir ser invisível. Mas isso não vai resolver o problema porque ele é inevitável. Então o que fazer? A resposta é abraçar sem medo essa tecnologia para que ela deixe de ser disruptiva, ajustando-a às nossas necessidades, e não nós a ela”, conclui.

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