A internet e os smartphones acabaram por ressuscitar a velha ideia da multidão solitária

A internet e os smartphones acabaram por ressuscitar a velha ideia da multidão solitária: sempre conectados, sempre atrás dos 15 minutos de fama e de consumir relacionamentos, vivemos uma vida de narcisismo.com. No final, passamos a maior parte do tempo sozinhos

Eu ainda era pequeno, e havia um livro na biblioteca de casa cujo título sempre me atraiu: A multidão solitária. Eu não sabia (só iria lê-lo muitos anos depois) que aquele livro, publicado por David Riesman em 1950, já era um clássico da sociologia contemporânea. Mas eu já intuía (talvez porque o título fosse tão marcante) que naquelas páginas devia haver alguma coisa interessante. E havia. Analisando a realidade americana no pós-guerra, com a proliferação da vida naqueles subúrbios repletos de gramados e piscinas, Riesman concluiu que as pessoas estavam perdendo o senso original de comunidade. A vida naqueles bairros, tão bem retratados em seriados como A feiticeira, nos contos de John Cheever e nos filmes de Jacques Tati, era a vida de pessoas deslocadas, que estavam perdendo os laços de parentesco, de comunidade e de amizade que se veem no campo, nas pequenas cidades ou em bairros tradicionais.

Além dos novos suburbs, estavam em alta naqueles anos as grandes corporações, que também ofereciam um simulacro de vida social, mas onde as relações de reciprocidade e solidariedade eram, para dizer o mínimo, muito frágeis (a IBM tinha até hino próprio, cantado todas as manhãs pelos funcionários, conforme relata Thomas Watson Jr., o filho do fundador, em sua autobiografia). Uma outra consequência daquela tendência suburbana – e que está hoje, mais do que nunca, na pauta – foi a cultura individualista das autopistas e dos carros (em geral, levando uma única pessoa) como meio de transporte. Naqueles tempos hipermodernos, as pessoas estavam sozinhas, literalmente, no meio de um monte de gente.

De lá para cá, todo mundo sabe, milhões de coisas aconteceram: muita gente tentou mudar o mundo, muitos livros foram escritos, muitas canções foram compostas, muitas marchas de protesto enfrentaram o establishment e suas polícias. Houve o movimento hippie e inúmeras variantes de contracultura; tentou-se, por um lado, uma volta a comunidades rurais e, por outro, a recuperação dos bairros centrais nas grandes cidades; voltou-se a andar a pé ou de bicicleta; contra as refeições impessoais das grandes cadeias de fast food apareceram movimentos como o slow food e a valorização da alimentação orgânica; surgiram os computadores pessoais e, logo depois, as comunidades virtuais (que era como se chamavam as redes sociais antes da web, ainda no tempo dos BBS), que facilitaram o relacionamento entre pessoas que estavam geograficamente distantes umas das outras. Eu, que cresci durante o regime militar, e como cofundador de um dos primeiros BBS de São Paulo, me lembro bem, junto com aquele barulho inesquecível dos modems se conectando à linha telefônica, do espírito otimista e libertário que nos contaminava.

Multidão Digital

Mas, de alguma forma, e apesar de tudo, às vezes parece que hoje aquele mundo descrito por Riesman continua mais vivo do que nunca. Tenho a sensação de que, em muitos aspectos, nos últimos dez ou 15 anos, enquanto novos condomínios eram erguidos, rejuvenescendo o conceito dos suburbs, nós andamos para trás. E, por paradoxal que seja, a web e os smartphones, ao levarem adiante o conceito das comunidades virtuais, acabaram por ajudar a ressuscitar a velha ideia da multidão solitária: sempre conectados, sempre atrás de nossos 15 minutos de fama, sempre atrás de consumir relacionamentos, nós vivemos uma vida de narcisismo.com e ficamos a maior parte do tempo sozinhos, enquanto pensamos que estamos falando com um monte de gente.

Somamos uma revigorada vida nos suburbs e suas autopistas aos subúrbios virtuais e suas bandas largas. Estamos nos tornando, de novo, pessoas solitárias, agora perdidas no meio da multidão digital. E aquele velho livro na biblioteca lá de casa, cujo título na lombada tanto me intrigava, parece estar, mais de 60 anos depois de publicado, mais atual do que nunca.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com

fechar