Diferentemente de como somos tratados lá fora, estrangeiro aqui é rei
Diferentemente de como somos tratados lá fora, estrangeiro aqui é rei. Nunca encontrei europeu, americano ou japonês entre mendigos; raros são os que moram na periferia. Nas prisões, há africanos e latino-americanos
O tempo veste a vida de significados. Houve um tempo em que sonhei com viagens. Estava preso, condenado a mais de cem anos de prisão e, para manter a sanidade, viajava sem sair do lugar. Os livros eram as espaçonaves. Preguei o mapa-múndi na parede e pesquisava frequentemente. Cultivar interesses era parte do sistema de sobrevivência. Tirei, das ânsias incontíveis que os livros me trouxeram, a ideia de viver um sonho. Fixei objetivos e, cheio de entusiasmo, parti para a ação.
Sairia da prisão e batalharia para desenvolver meu projeto. A ideia era desembarcar em Portugal, comprar uma perua Kombi e equipar para funcionar como casa e oficina. Depois colocar placa, em inglês e francês, oferecendo serviços de marceneiro, encanador, pedreiro e eletricista. Faria uma viagem de cinco anos pelas cidades da Europa, parando para conhecer pessoas e histórias.
Iniciei os treinamentos no Senai da prisão. Em quatro anos, concluí os cursos necessários para minha aventura. Entrementes, estudei francês e inglês. Sabia apenas ler; não havia quem me ensinasse a falar. Imaginava que lendo esses dois idiomas poderia me virar na Europa. Estudei mapas e levei cinco anos construindo meu castelo de areia.
Procurei pessoas dentro da prisão que haviam estado na Europa. Então meus planos vieram por água abaixo. Elas falavam de pessoas preconceituosas, que se acham melhor do que as outras. Diziam que, por vezes, foram tratadas como lixo e foram recebidas com profundo desrespeito. Falaram que só por apresentar o passaporte brasileiro já figuramos como suspeitos. A desconfiança é padrão no tratamento com que nos recebem. A discriminação já faz parte dos costumes. As pessoas viajadas afirmam que a única cidade livre da Europa é Londres. Sobre a discriminação que somos vítimas nos Estados Unidos, nem é preciso falar; somos cucarachas para eles, ou seja: baratas.
Vida de rei
Diferentemente de como somos tratados lá fora, estrangeiro aqui é rei. Nunca encontrei um europeu, americano, judeu ou japonês entre mendigos; raros são os que moram nos bairros da periferia da cidade. Quase sempre são de classe média para cima. Nas prisões, temos africanos e latino-americanos. Europeus, americanos, japoneses e judeus são raros. O conhecimento dessa realidade acabou com meu projeto. Nunca mais dei importância a qualquer país além do Brasil. Fiquei enojado dessa gente que se acha melhor do que os outros; ridículos, porque usam o banheiro como todos.
Caso o projeto do PT de reeleger a presidenta Dilma dê certo, muitos dos que possuem dinheiro vão pensar em sair do país, como muitos já fizeram. O crescimento econômico continuará pequeno, continuará não havendo oportunidade para especulação e ganhos indevidos. Haverá emprego para todos e a classe C continuará a expandir para os redutos da classe média. A economia continuará distributiva. Os programas como Bolsa Família e Bolsa Escola continuarão a funcionar. Os bancos não terão ajuda para tapar “buracos”; as indústrias usarão seus próprios recursos para gerar lucros; os jornais continuarão atacando o governo sistematicamente.
Azar de quem quiser partir; estes próximos anos prometem ser os mais fantásticos do país. Contestação, movimentos sociais em efervescência, confrontos entre polícia e manifestantes, brigas, discussões e retroalimentação da violência pelos meios de comunicação. A vida estará cheia de significados porque é tempo de afirmação do Brasil. Serão capítulos inéditos e de arrasar em um país convulsionado pela pior distribuição de renda do planeta. Quero acompanhar de perto essa movimentação. Como diria o poeta, só os peixes mortos vão rolar a favor da correnteza.
*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com