por Nathalia Zaccaro
Trip #269

Moscas, células e anticorpos viajam nas malas de cientistas, longe das condições ideais, em uma tentativa desesperada de pesquisadores que precisam lutar diariamente contra a burocracia brasileira

O biomédico Alexander Birbrair, professor do departamento de patologia da UFMG, construiu sua vida profissional nos Estados Unidos. Aos 22 anos, trocou São Paulo pela Carolina do Norte e de lá seguiu para Nova York, onde se dedicou a estudar células-tronco. Com o avanço das pesquisas, teve um artigo publicado na capa de uma das mais prestigiadas revistas de ciência do mundo, a Science. Ano passado, aos 30, sentiu vontade de voltar. “Sabe aquela sensação de jogar pela seleção do seu país? Eu queria isso”, conta.

Ele dividiu com os amigos os planos de abrir um laboratório na UFMG, em Belo Horizonte, e começou a organizar a viagem. Não demorou para que um colega brasileiro pedisse que Alexander trouxesse na mala um vidrinho de um reagente químico que estava difícil de ser comprado no Brasil e que era extremamente necessário para suas pesquisas. Algum tempo depois, cerca de dez outros cientistas lhe fizeram o mesmo tipo de pedido.

“Meu susto foi gigantesco. Eu não tinha ideia de como funcionava a questão da importação de insumos no Brasil. Quando soube dos prazos de entrega e vi que os preços chegam a ser 15 vezes maiores do que nos Estados Unidos, entendi a dimensão do problema. Um produto que custa US$ 200 lá custa R$ 5 mil aqui”, conta. No dia de sua volta, além de uma dezena de vidros de reagentes encomendados por amigos, Alexander despachou também três caixas, com 30 tubos cada uma, cheias de anticorpos e outros produtos químicos que ele guardava em seu laboratório americano.

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“Se a alfândega brasileira me parasse e mandasse jogar tudo fora, não sei o que faria. Eu levei todo tipo de documentação necessária explicando que aquele material era doação da universidade americana, que era para uso em pesquisa científica. É preocupante precisar passar por essas situações. Mas acredito que isso vai melhorar, tem muita gente lutando por essa causa”, afirma.

Essa rotina causa dificuldades no trabalho de uma quantidade expressiva de pesquisadores: 95% dos cientistas brasileiros já precisaram abandonar pesquisas ou mudar suas especificações por conta de problemas com a importação. O dado é do estudo “Custo Brasil: burocracia e importação para ciência”, realizado em 2014 com apoio da Academia Brasileira de Ciências e que concluiu também que o tempo de espera pela chegada dos produtos é, na maioria dos casos, superior a três meses. “Isso atrasa enormemente os avanços brasileiros. É um dos principais gargalos do nosso sistema. A situação é dramática, especialmente levando em consideração que estamos testemunhando sérios cortes no orçamento”, explica Ildeu de Castro Moreira, presidente da Sociedade Brasileira para Progresso da Ciência.

CAÇA COM GATO

O encolhimento dos recursos financeiros do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações foi drástico. O orçamento de 2017 era de R$ 5 bilhões. Pouco. Em março, foi reduzido para R$ 2,8 bilhões. Muito distante dos mais de R$ 9 bilhões que tínhamos em 2010. Segundo o ministério, os cortes foram feitos para “controlar os gastos públicos” e não há ainda previsão para o investimento de 2018, ainda que a proposta inicial do Ministério do Planejamento preveja novos cortes de quase 40%.

“Estamos praticamente sem dinheiro e somos obrigados a gastá-lo mal”, conclui o neurocientista Sidarta Ribeiro, refletindo sobre os altos preços dos insumos importados e os gastos envolvidos nas longas esperas que travam a evolução das pesquisas. “A gen­te tira dinheiro do bolso para pagar comi­da para os ratos, pagar passagem de aluno. 
É dar nó em pingo-d’água. Quem quer publicar precisa se arriscar trazendo reagentes, amostras e tecnologias do exterior por conta própria. É difícil, perigoso e ineficaz. Mas nos vemos obrigados a fazer as coisas fora da norma”, diz.

SOMOS TODOS CONTRABANDISTAS

Há dois anos, Sidarta submeteu um artigo sobre consolidação de memórias para a revista PLOS Computational Biology. O retorno foi positivo: queriam publicá-lo, desde que o cientista refizesse parte do experimento com outras duas proteínas. Ele tinha dois meses para reenviar o texto. “Nos Estados Unidos, eu teria comprado os anticorpos necessários às 8 da manhã e o material estaria na minha mesa no dia seguinte. No Brasil, pedi os anticorpos e o prazo para chegarem era de 60 dias. Eu não tinha esse tempo.”
A solução foi pedir favor a um amigo que voltava dos Estados Unidos. Não deu tudo certo. A mala com os anticorpos extraviou e o reagente ficou dois dias longe da refrigeração indicada. “Quando finalmente recebi o material, ele estava funcionando, mas não perfeitamente. Foi danificado pelas condições inadequadas da viagem. Mas, mesmo assim, consegui refazer o experimento e publicar o artigo”, conta.

Stevens Rehen é professor titular do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e diretor de pesquisa do Instituto D’or de Pesquisa e Ensino. E já está acostumado. “Toda vez que vou para o exterior trago alguma coisa: vidrinhos com anticorpos, proteínas, reagentes, amostra de células congeladas.” Em 2005, ele conduzia nos Estados Unidos uma pesquisa com células embrionárias quando decidiu voltar ao Brasil. Importar oficialmente suas amostras se mostrou mais complexo que desvendar os genomas das células que pesquisava.

“Precisei trazê-las no avião e, para mantê-las vivas, tive que levar também um tanque de nitrogênio. É do tamanho de um extintor de incêndio pequeno. É um equipamento aprovado pela agência de aviação americana. Mesmo assim, me senti muito desconfortável. Deu medo de perder todo o material, tudo que avancei até 2009 dependeu dessas células”, relembra. Ele passou ileso pela alfândega brasileira.

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O mesmo não aconteceu com Tomás, irmão da geneticista Lygia da Veiga Pereira. A pedido dela, ele trazia em sua bagagem de mão um pequeno isopor com gelo seco que guardava células humanas congeladas que ela usaria para entender como o cromossomo X age em mulheres. “Ele me ligou bravo, dizendo: ‘Me pegaram com esse negócio’. Mas conseguimos conversar na alfândega e acabou dando tudo certo”, conta Lygia.

O frio na barriga na hora de retirar as malas da esteira rolante dos aeroportos também é comum para cientistas que trabalham com moscas Drosophilas. Esse tipo de inseto é muito utilizado para estudos de genética, não transmite doenças e não é uma praga para nenhuma outra espécie. Mesmo assim, conseguir um tubo com 30 moscas desse tipo pode demorar meses. “Elas ficam tanto tempo esperando a liberação do governo que chegam mortas no laboratório”, explica um geneticista que preferiu não se identificar. A demora é tanta que o caminho mais viável acaba sendo acomodar os insetos na mala e trazer por conta própria. “Já fiz isso muitas vezes, assim que chego abro a mala correndo para ver se minhas moscas continuam lá ou se foram confiscadas e, consequentemente, incineradas”, diz.

KAFKA EXPLICA

Pesquisadores que direcionam seus estudos para a ação de substâncias psicodélicas no corpo humano têm ainda mais dificuldade em conseguir material para pesquisa. Desvendar o potencial clínico e médico de substâncias que há anos têm sido ignoradas pela ciência é uma tendência mundial. Substâncias presentes na ayahuasca, por exemplo, podem gerar neurogêneses em cérebros humanos, ou seja, a criação de novos neurônios, efeito similar ao de antidepressivos.

O avanço desse tipo de descoberta esbarra na burocracia brasileira que inviabiliza o manuseio de substâncias como DMT, princípio ativo da ayahuasca. Neurocientistas brasileiros estão se mobilizando para tentar clarear a legislação. Enquanto isso, o jeito é trazer um saquinho de DMT em pó, comprado nos Estados Unidos, disfarçado no nécessaire, entre a pasta de dentes e o desodorante.

Os testes da indústria de cosméticos em animais são criticados em todo o mundo. A necessidade de criar alternativas é, ou deveria ser, uma prioridade. Stevens Rehen trabalhava no desenvolvimento de neurônios sensoriais que poderiam substituir seres vivos nesse tipo de teste. Ele mantinha suas amostras vivas quando precisou de um reagente específico que não tinha em seu laboratório. Fez o pedido. A previsão de chegada era de um mês. Uma eterni­dade, mas ele se virou para manter o experimento funcionando durante os 30 dias de espera. Dois meses depois, nada da entrega. Os neurônios morreram.

Depois de três meses, a encomenda chegou e coroou os quatro meses de trabalho perdido. “Mais do que os altos preços, a demora em receber o material é um enorme problema. Dificulta demais o trabalho. Existe um novo vírus que é transmitido pelo Aedes aegypti, o West Nile. É preciso responder rápido a esse tipo de coisa. Se essa doença chega agora aqui, eu teria que esperar meses para ter os reagentes necessários para testar. Não dá para trabalhar sempre com tanta antecedência”, diz Stevens.

Em janeiro do ano passado, a então presidente da República Dilma Rousseff sancionou o Marco Legal da Ciência, Tecnologia e Inovação, que, entre outras coisas, visa amenizar os problemas envolvendo importação de insumos. A medida ainda aguarda a publicação de decreto presidencial para passar a valer. “É uma ideia muito boa, mas precisamos que o governo seja mais ativo, garanta entregas urgentes e fiscalize o sobrepreço. Em vez disso, o que estamos vendo é uma administração que parece querer destruir a ciência brasileira, realmente não estão preocupados com nada”, critica Sidarta.

Com o mesmo objetivo, ainda em 2004, a CNPq lançou o programa Ciência Importa Fácil e ofereceu incentivos fiscais aos pesquisadores que fizessem importações como pessoa física e com dinheiro público. “O programa deveria se chamar ‘Importa Menos Difícil’, tudo ainda é muito demorado. Entendemos as limitações orçamentárias, mas revolucionar a ciência brasileira hoje não depende de dinheiro. Basta vontade política para tratar essa questão da burocracia da importação”, diz Lygia da Veiga Pereira.

SAÍDA DE EMERGÊNCIA

O lançamento da primeira entidade privada dedicada ao fomento de pesquisa do país, a Serrapilheira, em março deste ano, trouxe uma nova perspectiva. “Nos Estados Unidos é muito comum contarmos com dinheiro de empresas, a ciência é vista como investimento”, conta Alexander. Fundado pelo casal João e Branca Moreira Salles, o instituto lançou seu primeiro edital em julho deste ano, ainda sem aprovados. No primeiro momento, serão selecionados 70 projetos que receberão até 100 mil reais. Depois de um ano, de 10 a 12 projetos serão contemplados com aportes de até 1 milhão de reais para 3 anos de pesquisa.

Parcerias internacionais também têm ajudado. A SciBr é uma entidade não governamental que trabalha para fortalecer a rede de apoio a cientistas brasileiros que trabalham no exterior. Mas acaba ajudando também quem está no Brasil precisando de insumos importados. “O tempo todo recebo pedidos de pesquisadores que precisam de reagentes para seus trabalhos. A forma que encontramos de auxiliar é os colocando em contato com cientistas americanos que colaboram fazendo experimentos aqui e dividindo os resultados”, explica Vitor Pamplona, presidente da SciBr.

Enquanto busca encontrar caminhos para viabilizar a inovação dentro da pesquisa nacional, Ildeu de Castro Moreira relembra um experimento feito em 1919, no Ceará, o Eclipse de Sobral: “Com o objetivo de comprovar a deflexão da luz durante um eclipse, teoria prevista por Albert Einstein, equipes de cientistas internacionais se aliaram a pesquisadores brasileiros para executar o experimento histórico. Dias antes da data prevista, a verba ainda não havia sido liberada. O chefe da comissão brasileira foi então entender no Tribunal de Contas o que estava acontecendo e ouviu a seguinte resposta do responsável: ‘Ainda estamos cuidando dos trâmites burocráticos. Será que não dá pra adiar esse eclipse?’”. Parece que não mudou muita coisa.

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