Não há como existir, em sociedades complexas, o exercício direto do poder
Não há como existir, em sociedades complexas, o exercício direto do poder, assim como são outras pessoas que plantam o que você come e fabricam suas roupas. Mas o sistema deve ser aperfeiçoado
Se você não vive numa pequena comunidade indígena isolada nem num pequeno cantão suíço, então, não se iluda, a sua prática política não é, nem será, direta. Você poderá atuar em coletivos, participar de manifestações, opinar na associação de bairro. Mas da grande política, a que determina a atuação do Estado, você participará indiretamente, por meio de representantes. Não há como existir, em sociedades complexas, o exercício direto do poder, assim como são outras pessoas que plantam o que você come, fabricam o que você veste e assim por diante. Sendo “representativa” ou “indireta”, a prática política é, por definição, imperfeita. O que não quer dizer, porém, que não possa e não deva ser, vez ou outra, aperfeiçoada. É o caso do Brasil hoje. E com urgência.
Os protestos que tomaram as ruas do país no ano passado foram interpretados de diversas maneiras, mas a que eu prefiro é a de que o Brasil vive uma séria crise de representatividade. Aparentemente, essa também é a visão do governo Dilma. Tanto que partiu de lá, há pouco tempo, a proposta de criação de conselhos populares, uma forma pela qual a sociedade poderia “cortar caminho” e, pelo menos em parte, se autorrepresentar, passando ao largo dos partidos e do Congresso. Ora, essa solução apenas mudaria um modelo de representação por outro, não necessariamente melhor, com a tendência de desequilibrar o jogo em favor de grupos mais organizados, por exemplo, ruralistas, evangélicos, sindicatos tradicionais, movimentos de sem-teto etc.
Ok, é complicado esperar que o sistema melhore por iniciativa de um Congresso que não se cansa de legislar em causa própria. Afinal, a forma como está estruturada a democracia brasileira foi definida pela Constituinte de 1988, trazendo um defeito de nascença: a Assembleia que votou a Constituição não foi escolhida exclusivamente para esse fim, foram “aproveitados” os parlamentares eleitos em 1986, quando ainda vigorava o regime militar. Mas, se é ruim com o Congresso, será muito pior sem ele. Historicamente, as tentativas de criar atalhos entre o povo e o poder acabaram, na maior parte dos casos, por gerar ditaduras, ora fascistas, ora comunistas, ora populistas, nas quais os líderes, sem a intermediação das instâncias minimamente plurais e independentes do Legislativo e do Judiciário, passaram a governar “diretamente” respaldados por uma vaga e nunca bem aferida “vontade popular”. No fim das contas, mesmo que não lidere as reformas, o Congresso não pode ficar de fora.
BUSH X AL GORE
Mas o que, e como, reformar? Não existem respostas simples. Nenhuma democracia no mundo é perfeita, todas passam por crises periódicas, nas quais são obrigadas a olhar para dentro e discutir mudanças. Só para dar um exemplo: a mais antiga das democracias ocidentais, a dos Estados Unidos, viveu há alguns anos, por conta do modelo ali adotado (que dois séculos atrás parecia perfeito), a situação em que o candidato mais votado (Al Gore) perdeu a eleição para o segundo colocado (George W. Bush).
No Brasil, os problemas são inúmeros e conhecidos: o financiamento de campanhas, a ausência do voto distrital, a relação promíscua entre Executivo e Legislativo, as regras para a criação e o funcionamento dos partidos, a reeleição, o poder sem ética de um marketing político que vende candidatos como se fossem geladeiras, e por aí afora. Mas pior do que deixar como está será buscar soluções atabalhoadas. Especificamente no caso atual, não se pode cogitar que reformas no sistema possam ser impostas pelo Executivo, por decreto (ainda mais em fim de mandato).
O aperfeiçoamento do sistema político brasileiro é necessário e urgente, e talvez abrir esse debate seja mesmo a maior prioridade na agenda do próximo presidente eleito, seja lá quem for. É dela que devem partir, em seguida, outras reformas inadiáveis, como a tributária, a previdenciária e a trabalhista. Sabendo disso, devemos ter em mente que, apesar da urgência, a tarefa que temos pela frente é extremamente complexa. Ela terá que envolver toda a sociedade numa ampla e profunda discussão, sem comportar atalhos ou remendos.
*André Caramuru Aubert, 50, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com