Selecionamos as imagens, ideias, reportagens e personagens que traduzem nossa visão de saber
Neste ano, em que celebramos o 32º aniversário da Trip, decidimos selecionar imagens, ideias, reportagens e personagens que, ao longo dessas décadas, traduzem com graça nossos temas de interesse e nos ajudam a clarear o olhar da revista para o mundo.
São 12 os pilares que fundamentam nosso projeto editorial: Corpo, Alimentação, Trabalho, Sono, Teto, Saber, Liberdade, Biosfera, Conexão, Diversidade, Acolhimento e Desprendimento. Foi um mergulho prazeroso e profundo em nossa história.
Todo este conteúdo foi acrescido de informações e novas entrevistas com personagens que protagonizaram passagens importantes da trajetória da Trip. Seguimos sempre em frente.
2008
#169 | Tema: Saber
Saberes em extinção
Por Lino Bocchini | Foto de Araquém Alcântara
Só mais quatro pessoas podem entender essas duas da foto. As Akuntsu clicadas pelo fotógrafo Araquém Alcântara [em 2008] fazem parte do grupo de seis indivíduos que restaram de seu povo, na região de Corumbiara, sul de Rondônia. Todos os outros índios Akuntsu morreram por doenças ou foram abatidos a tiros. “Os dois homens restantes têm marcas de bala no corpo”, diz o antropólogo Adelino Rocha, que já esteve quatro vezes na região. “Os Akuntsu estão em uma situação delicadíssima, e sofrem risco real de desaparecer em pouco tempo”, alerta Aryon Rodrigues, professor da Universidade de Brasília que dedicou 60 dos seus 83 anos à pesquisa de línguas indígenas.
E a etnia está longe de ser uma exceção nesse bico do corvo cultural. Na área em que vivem, próxima ao rio Omerê, ainda estão os dois últimos remanescentes do povo Kanoê, que também tem língua própria. O decano linguista dá o tamanho da tragédia: “Quando os portugueses chegaram ao Brasil, havia cerca de 1,2 mil línguas indígenas. Hoje não passam de 180, e esse número continua diminuindo. E não há como salvar o que já foi, não há registro algum da maioria das línguas já extintas, e de outras tantas resta apenas uma lista de palavras”.
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E agora?
Hoje, restam três sobreviventes da etnia Akuntsu e três da Kanoê (considerando apenas os que vivem na Terra Indígena do Rio Omerê, que são vizinhos aos Akuntsu), de acordo com informações do Instituto Socioambiental. Mais de 300 Kanoês vivem em outras regiões de Rondônia.
2011
#203 | Tema: Educação e emoção
A pior escola do Brasil?
Por Karla Monteiro | Foto de Marizilda Cruppe
Fomos até o Alto Solimões, perto da fronteira com a Colômbia, conhecer a Escola Estadual Pedro I. Com 600 alunos indígenas, a escola ficou em último lugar no Enem [de 2009] porque, entre os estudantes, português é a segunda língua – e às vezes até a terceira –, atrás do ticuna e do espanhol. Um exemplo claro de como é complicado ter um mesmo currículo e um mesmo sistema de avaliação para o Brasil inteiro.
Na língua que não dominam, o português, os jovens precisam ler e escrever – e prestar exames. E, na língua que dominam, o ticuna, também encontram limitações na leitura e na escrita, por tratar-se de uma língua de tradição oral. Assim caminha a juventude ticuna: soterrada numa salada de identidades. Perguntados sobre o que querem da vida, eles respondem o mesmo que a maioria dos jovens: entrar na universidade.
“O Enem não reflete nem respeita a cultura amazônica. As escolas indígenas participam com toda coragem e boa vontade”, diz Fanito, gestor da Pedro I. Com pós-graduação em pedagogia, ele garante: indo bem ou mal no Enem, a ordem nos corredores do seu reduto é perseverar.
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E agora?
O Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) anunciou, no início de 2017, o encerramento da divulgação anual das médias por escola das notas do Enem. Segundo o órgão, existia uma inadequação na divulgação desses dados, que produzem rótulos que nada contribuem para o aprimoramento pedagógico ou para intervenções que tem como objetivo a melhoria da qualidade do ensino.
1999
#71 | Tema: Tempo
Antes só
Por Juliana Pereira | Foto de Marcio Simnch
João Manuel Borges, o “Zé das Cabras”, vive há 36 anos sozinho numa ilha do litoral catarinense, sem amigos ou família, tendo como companheiros apenas a solidão, o mar, o vento e algumas cabras. Hoje [1999], doente e cansado, ele se prepara para o maior desafio de sua vida: voltar à civilização.
Depois que a esposa morreu, em 1962, João entregou sua recém-nascida a uma irmã, deixou para trás outro filho pequeno e partiu para a ilha inexplorada, a uma hora e meia de barco de Florianópolis. “Escolhi esta ilha porque é a única na região boa pra plantar.” Levou consigo outras três filhas mais velhas, que o abandonaram assim que encontraram pretendentes que as tirasse de lá. A caçula, João nunca mais viu.
Nesses 13 mil dias de isolamento voluntário, seu João [aos 80] viveu em um casebre erguido por seus próprios músculos. O corpo, de 1 metro e meio de magreza, ainda resiste, apesar de um derrame sofrido há alguns meses. João não escova os dentes, preferindo raros bochechos com água. Também não usa sabonete, mas faz questão de banhar-se em água doce, aquecida numa bacia.
Não tem calendário e muito menos relógio. Mas vê o tempo registrado nas cores do céu e na forma das sombras. “São 9 horas, né?”, adivinha, antes que um intruso tenha tempo de olhar para o relógio de pulso e confirmar, com espanto, que os ponteiros estão cravados na hora cheia: 9 da manhã.
Para Zé das Cabras, porém, tudo isso pertence ao passado. Envolta em mistério, a decisão de partir é irredutível: “Não quero mais ficar aqui. Sei que na terra não vou acostumar, mas daí morro logo”.
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E agora?
Zé estava certo, morreu meses depois de deixar a ilha, em 1999.