Roberto DaMatta e a dimensão política da paixão nacional pela bunda

por Roberto da Matta
Trip #241

Num sistema que teve imperadores e barões e foi tocado por escravos, antes de ter populistas ladrões da coisa pública, a revelação da bunda mostra (na corrupção que nos sodomiza) o lado oculto do populismo

No Brasil, como em todo lugar, a bunda ocupa somente um lugar no espaço físico — cada qual senta apenas num banco, cadeira, latrina ou poltrona — mas os seus significados escondem um mundo.

Um deles, revela o lado passivo da bunda, essa peça anatômica que contrasta com o rosto e, entre nós, tem bochechas e um olho, mas não teria sexo! A bunda é tão apreciada como objeto de desejo (ou comida) que pode ter como dono um homem, embora seja sempre feminina porque ligamos a bunda com a passividade do traseiro, com a inocência do que pode ocorrer pelas nossas costas e do que fica situado debaixo da cintura, esse hemisfério que a tradição judaico-cristã situou como o espaço central dos grandes pecados.

Num trocadilho de mau gosto, poderíamos dizer que a bunda abunda no imaginário simbólico nacional. Um bundão (ou bundona) é uma pessoa sem marca, sem rigor ou rumo. A bunda é sempre mole, mas o ideal de uma bundinha firme permanece. O seu feitio redondo permite imaginá-la como algo a ser "dado" e "comido".

Tudo que se relaciona a retidão é designado pelo plano, por aquilo que é reto e firme como um mastro. No Brasil, "botamos na bunda" dos nossos inimigos, protegemos nossas bundas, mas matamos a cobra mostrando o pau.

Não é complicado compreender por que a bunda, como o traseiro — a parte do corpo que não vemos, mas é vista pelo outro com nitidez — é um excelente símbolo para o ridículo, para a dessacralização, para o pecado. Charles Chaplin entendeu isso e são inúmeras as cenas de suas comédias nas quais o ricaço pomposo e bem-vestido ou o policial que banca a repressão levam um pontapé na bunda. Ou quando o trono ou a cadeira é puxada e caímos de bunda no chão.
Num sistema como o nosso, que teve imperadores e barões e foi tocado por escravos, antes de ter populistas ladrões da coisa pública —, políticos e governos cheios de promessas, mas repletos de embustes — a revelação nua e crua da bunda mostra (na corrupção que nos sodomiza) o lado oculto do populismo. Desmistifica o fato de que tudo e todos têm um traseiro. Um traseiro que pode ser comido.

A admiração da bela bunda cuja dona é oficial e normalmente uma mulher, harmoniza um sistema fortemente aristocrático, no qual tudo deve estar no seu lugar. Esse arrebatamento pela bunda pode ser visto como tendo uma tripla função. Em primeiro lugar, dá ao humilde traseiro uma posição de destaque substituindo o rosto (mulher Raimunda, feia de cara, mas boa de bunda!) como centro do corpo, o que revela o nosso gosto oculto pela sodomia; em segundo, protege eventuais e hoje raríssimas virgindades; e, finalmente, revela como a vida erótica, que ainda não foi roubada nem regulada por nenhum governo ou lei, ainda pode ser, pelo menos no Brasil, gozada de modo arredondado. Como também e com uma bunda.

Hoje, a par da nossa admiração pelas bundas em geral, sofremos de uma neurose. Olhamos tanto para os traseiros alheios, enquanto o nosso é rotineiramente comido pelo governo.

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