Revolução do e-book

Caramuru: ’Quanto mais formatos um livro tiver, mais chances terá de ser lido e preservado’

Se música é mais do que uma bolacha de vinil, livro também é mais do que uma árvore morta encadernada. Livro é o conteúdo, é o que está escrito. Quanto mais formatos ele tiver, mais chances terá de ser lido e preservado

As revoluções têm a fama de primeiro destruir, para depois, se tudo der certo, construir algo novo. Mas e quando são as revoluções que trazem a possibilidade de se preservar o que havia antes? É isso o que está acontecendo no mundo dos livros com a chegada dos e-books. É claro que há quem torça o nariz, caso do pensador Umberto Eco. Numa entrevista que ficou famosa, Eco desdenhou do e-book, dizendo que o livro é uma invenção tão perfeita quanto a roda, daquelas que, quando surgem, não podem ser melhoradas. Será mesmo? Ou será que o bibliófilo Umberto Eco (dono de uma invejável coleção de obras raras) não está sendo um pouquinho conservador e inexato? O que ele chama de “livro” é esse objeto com páginas de papel impressas dos dois lados, cobertas por capa, contracapa e lombada. Esse formato, o códex, foi inventado pelos romanos lá pelo século 2 e se popularizou uns 600 anos depois, matando então o formato rolo. Mas, caramba, o que havia antes, como a Odisseia e a Bíblia, em papiros ou pergaminhos, não eram livros?

Ora, muito mais importante do que discutir suportes é a questão da preservação da memória coletiva. Apesar do que Eco afirma, poucas mídias são tão frágeis quanto o livro de papel. Papel se desfaz e encadernações desmontam. Dos 20 milhões de obras na Biblioteca do Congresso, nos Estados Unidos, 30% estão em condição tão crítica que não podem mais circular. Os números na Biblioteca Pública de Nova York são ainda piores: 50% de seus 5 milhões de livros estão se desintegrando. A taxa média de deterioração é de 4,66% ao ano. O papel é vulnerável ao fogo, à água e à umidade. E, como todo material orgânico, é cobiçado por uma legião de bichos gulosos, que vão de ratos, traças a cupins. Só a família das Cerambycidae, uma variedade de besouros que devora livros, conta com 20 mil espécies.

Até onde o papiro, o pergaminho e o papel comprometeram nossa herança? Para ficar num só lugar: estima-se que 75% de toda a produção escrita grega (poesia, filosofia, teatro etc.) tenha desaparecido. Das 120 peças de Sófocles, nós só conhecemos, integralmente, sete (o que Freud teria feito com as outras 113?). Dos cinco livros de Corina de Tanagra, uma das mais importantes poetisas gregas, restaram poucas linhas. E há algo mais perverso: a herança cultural não é feita só de “grandes autores”; os “menores” estão mais sujeitos, junto com o papel que lhes deu suporte, ao desaparecimento. A produção, o armazenamento e a distribuição de livros digitais são muito mais baratos do que de impressos.

PROJETO GUTENBERG

O Projeto Gutenberg, sem fins lucrativos, vem digitalizando obras livres de direitos autorais desde 1971 e tem mais de 42 mil livros disponíveis. Boa parte não poderia ser consultada de outra forma. O Google começou em 2004 um projeto ainda mais ambicioso, que é o de digitalizar “tudo o que existe” (já foram copiados 20 milhões de livros). O projeto causou pânico pela possível perda de direitos autorais e rendeu um processo contra a empresa, movido pelo sindicato dos autores. Num caso que já teve muitas idas e vindas, uma recente decisão da Justiça americana, em novembro, favoreceu o Google, dizendo que não há indícios de incentivo à pirataria e reconhecendo que a empresa, mesmo visando o lucro, está prestando um enorme serviço à cultura. Há outros exemplos, mas o conceito é o mesmo. O mais importante, nesses projetos, é a possibilidade de que livros há muito desaparecidos (muitas vezes por escassas possibilidades de retorno comercial) sobrevivam e possam voltar a circular.

Se fotografia é mais do que sal de prata e música é mais do que bolacha de vinil, livro é mais do que árvore morta encadernada. Livro é o conteúdo, é o que está escrito. E, em quanto mais formatos estiver, mais chances terá de ser lido e preservado. Como em toda revolução, também haverá vítimas, e as livrarias de tijolo são as mais prováveis. Mas, mortos e feridos à parte, louvemos a revolução do e-book, porque, mais do que destruir, ela traz a inédita perspectiva de salvar e até de ressuscitar livros.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é andre.aubert@hotmail.com

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