Reclamação
Hoje estou chato. Amanheci azedo, mas a vontade de escrever acorda comigo. Vou aproveitar o clima para fazer reclamações.
O Estado jamais fez nada por mim. Apenas enterrou vivo e em pé, dentro de suas prisões. Seus representantes espancaram, torturaram, encheram de balas e fizeram sofrer ao extremo em mais de 35 anos que estive sob sua tutela. A primeira vez que subi no pau de arara, tinha 14 anos.
Claro, agredi, feri, roubei e matei até dentro da prisão. Era um azougue. Nem as condenações que chegaram a somar mais de centena de anos, me pararam. Os livros me pararam. Minha vida se desenrolara em poucos metros quadrados e eu estava preso para sempre. Quando entendi o quanto havia perdido, quase enlouqueci. Mas se saber desesperava, também enchia de esperanças. Não estava morto, assimilava tudo avidamente e podia me comunicar com o mundo. Mesmo preso, podia viver.
A leitura alimentava meu imaginário de vida. Bernard Shaw afirmava que escrever ou é fácil ou é impossível. Trabalhei minha vontade para tornar fácil a expressão escrita. Ler e escrever se tornaram meios de vida e relação. Reler o mundo, reestudar valores, reconhecer a mim mesmo, buscar entender pessoas, construir paciência e raciocinar com lógica são tarefas que uma vida só não bastaria. Mas mesmo sozinho, tentei. Ainda não sei qual tenha sido o resultado.
Nunca ninguém do Governo me ajudou. Pelo contrário. Os guardas que revistavam minha cela reclamavam que eu tinha muitos livros. Várias vezes conseguiram tirar meus livros, mas eu corria atrás e conseguia reaver. Se no começo usei a biblioteca da Casa, ajudei a salva-la em duas rebeliões que imbecis queria atear fogo. Eu e amigos nos colocamos na frente e não permitimos. Muitas pessoas do mundo exterior me ajudaram com livros, amizade, diálogo e dedicação. Mas do Estado, só estive na escola para fazer Exames Supletivos e depois para trabalhar. Entrei como bibliotecário, passei a escriturário e por fim professor.
Nunca me deram nada além do substancial para sobreviver. Tudo o que conquistei; eliminar o curso Fundamental e o Médio em Exames Supletivos; ser o primeiro preso do Estado a prestar Exame Vestibular; primeiro a freqüentar faculdade; depois, escrevi e publiquei livros ainda preso; tive (e tenho há quase 8 anos) coluna na revista TRIP; tornar-me cidadão; aprender a ensinar, alfabetizar e ser professor; ser respeitado pelo meu trabalho; ter pessoas que me admiram, lêem e acompanham há anos; fiz amigos de verdade que me apoiaram sempre; e outras atividades e projetos que desenvolvi e desenvolvo, sempre foi sem a colaboração do Estado. Muito pelo contrário. O Estado só me deu grades, guardas e sobrevivência. Enlouqueceria como aconteceu com os outros três que foram presos comigo, caso ficasse só por conta deles.
Jamais me deram nada e hoje vivem a me tomar. Ganho R$ 2000,00 por Oficina de Leitura e Escrita que realizo com 25 a 30 participantes em cerca de 16 ou 20 horas. De imposto pago mais de R$ 700,00 reais. Ficam com quase metade de meu ganho e nunca fizeram nada por mim. Descontam na fonte, não me permitem a chance de sonegar.
Não haverá aposentadoria para mim. Como, se estive preso a vida toda? Preso não pagava INSS. Mesmo que agora quisesse, não esta sendo possível. Não consigo um emprego, vivo de correrias com Oficinas, palestras, consultorias e textos. Não tenho plano de saúde. Para mim, aos 57 anos, ficaria caro. Para meus meninos, deveria ter salário fixo para poder ter esse crédito. Prefiro ter um dinheirinho no banco para essas emergências. Exercito meu corpo, faço fé na saúde dos garotos, e alimento a esperanças de conseguir trabalhar até morrer. E assim vou.
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Luiz Mendes
21/01/2010.