Mergulho concreto

por Claudia Grechi
Trip #57

A Trip desafiou um mergulhador a descobrir o que há no fundo das águas fétidas e quase sólidas do Rio Pinheiros

Enquanto as versões molhadas de maurícios do mundo inteiro sonham em dar comida aos tubarões nos resorts caribenhos, Rafael de Nicola, vinte anos de mergulho profissional, se coloca a léguas submarinas de distância desses limitados desejos. Nicola é um homem capaz de desafiar as mais incríveis façanhas em meio líquido. Sua missão mais punk foi mergulhar em uma cratera de 26 metros de profundidade lotada até a boca com um tipo de cimento chamado lama betonítica. Para Trip, ele topou rastrear as sucatas depositadas nas águas fétidas do rio Pinheiros.

Quando é solicitado para qualquer missão de alto risco, o mergulhador Rafael de Nicola, de 36 anos, responde sempre da mesma forma: “Se o meio de trabalho é líquido, aceito.” Rafael já mergulhou em profundezas desconhecidas, resgatou corpos dados como desaparecidos, submergiu em águas gélidas. Mas o que ninguém esperava é que um dia ele pudesse encarar um mergulho em lama betonítica. Aconteceu.

Pra quem não sabe (só os engenheiros civis sabem), lama betonítica é uma espécie de cimento, muito mais espessa do que água, totalmente opaca. Em canteiros de obras, preenche buracos de dezenas de metros de profundidade. Sua função é impedir que as paredes da escavação desmoronem. Rafael foi contratado por uma empreiteira em Guaianazes, periferia de São Paulo, para fazer um “servicinho”. Ele se enfiou em uma cratera com 1,80 metro de diâmetro por 26 de profundidade, cheia até as bordas com lama betonítica. O buraco deveria receber um pilar de sustentação para um novo viaduto, mas a perfuratriz que fazia o trabalho de escavação se rompeu, e a caçamba que retirava o entulho foi parar no fundo. A missão de Rafael: recuperar a bagaça. Caso contrário ela seria concretada no fundo e perdida.

O mergulhador teve de afundar nos 26 metros de lama até chegar à caçamba, prendeu nela um cabo de aço e foi puxado de volta por uma corda presa às suas costas. Detalhe: a natação era impossível, a visibilidade nula e não havia como checar profundidade, tempo de fundo, nem quantidade de ar disponível. Rafael movia-se vagarosamente na escuridão total, sem noção de tempo, espaço, nem da posição do seu próprio corpo. “Já fiz busca para a Marinha com visibilidade crítica, em águas poluídas, em lugares com lama, em fundo de lodo, e não há nada que se compare a isso”, diz ele.

Para não arriscar sua vida à toa, antes de mergulhar ele se submeteu a um minucioso treinamento que consistia em tatear uma peça idêntica à que estava no fundo da lama. De olhos vendados. Por isso, ele entrou na lama com as mãos descobertas, já que o tato era o único dos cinco sentidos úteis no caso. O monitor Sérgio Faria, o Barney, foi o Robin da história. Como nenhum aparelho de comunicação funciona dentro da lama betonítica, coube a Barney manipular, em terra firme, a corda presa às costas de Rafael. Foi ele o responsável por dar mais corda e por puxar o mergulhador de volta.

Assim Rafael recorda a balada: “Foi desconfortável. Parecia que eu estava afundando no mingau, uma coisa muita estranha.” Para se ter uma ideia melhor, a lama betonítica era tão grossa que, minutos depois dele já ter sido puxado pra fora, suas bolhas continuavam chegando vagarosamente à superfície.

“Uns dois dias antes desses mergulhos de alto risco, eu costumo me questionar: Porra, mas por que vou fazer isso? Juro para mim mesmo que nunca mais vou fazer. Mas depois toca o telefone… é muita adrenalina… No dia seguinte, já estou lá. Depois da missão, quando começo a refletir sobre o que fiz, choro por uns dois dias.” Tentar desvendar a mente de Rafael é um desafio. Quem imagina o clichê do esportista zen, que medita em alfa e lótus com as pernas cruzadas e os dedos em riste apontando para o céu antes de cada mergulho, vai se dar mal. A concentração de Rafael passa longe do estereótipo do esportista que medita e come gérmen de trigo para manter a sanidade do corpo e da alma. “Antes de mergulhar, simplesmente dou uma corrida ou então jogo tênis. Não faço dieta alimentar à base de nada especificamente. Só como muito chocolate ou bolacha recheada depois dos mergulhos por causa da glicose. Só”, explica o homem que, como se vê, é muito pouco preocupado com os suplementos vitamínicos e isotônicos que fazem a alegria dos chegados num tatame.

A adrenalina que corre nas veias do mergulhador não tem nada de zen. Enquanto você fala bom dia, Rafael já falou bom dia, boa tarde e boa noite com inserções sobre os mais diversos assuntos.

O homem é literalmente movido a adrenalina. Numa comparação pífia, pode-se dizer que Rafael é como uma criança super-ativa num corpo de adulto. “Sei lá. Não me lembro de nada na vida que não tenha mergulho no meio. Gosto dos obstáculos. Sempre preciso buscar algo para me testar. O que me move é o desafio. Tudo que nenhum outro homem tiver realizado, me interessa”, diz Rafael, com a flama da paixão de quem faz o que gosta e pode tirar disso o seu sustento diário.

Em tempos de revolta de nerds de cabelo tigelinha, que intrigam a compreensão humana ao deixarem seus “contêineres” apodrecendo numa estupenda mansão de vários milhares de dólares, surpreende que ainda existam homens cuja vida é movida a desafiar seus próprios limites físicos e mentais. Gente que não trata seu corpo como uma carcaça e sua mente como um chip. Além de fazer mergulhos barra-pesada, Rafael é instrutor, consultor e prestador de serviços das Forças Armadas - para quem já realizou trabalhos secretos e perigosos. Acontecimentos infelizes naturalmente apareceram no seu caminho. O pior, de longe, foi a tentativa de encontrar dois rapazes que haviam saído para mergulhar na Laje de Santos, litoral de SP, e acabaram se perdendo. Só um foi achado vivo, na ilha de Alcatrazes.

O boné do Zóia

O primeiro desafio proposto por Trip a Rafael foi o de mergulhar no lago que se formou no fundo da pedreira do Dib, incrustada há 60 anos na serra do Cantareira, em São Paulo, e há muito tempo desativada. A lenda dizia que as profundezas do lago guardavam desde carros roubados a corpos em decomposição. Rafael e mais cinco assistentes foram munidos de bote inflável, computadores e equipamento para rapel. Embora a paisagem inspiradora fizesse a imaginação supor que ali sairiam restos de carros, corpos em decomposição e objetos de valor, o que foi resgatado se resumiu ao esqueleto de um guarda-sol e um boné, o boné do frequentador Zóia, um garoto de pouco mais de dez anos que naquele dia saltava nas águas de uma altura de aproximadamente dez metros. O boné do Zóia repousava na lagoa havia três dias. Infelizmente, as águas da pedreira não nos reservaram objetos “hora do espanto” nem monstros subaquáticos. Mesmo assim, o desafio estava realizado. A partir daí, tivemos a certeza que não havia tarefa que Rafael não fosse capaz de executar. Para um homem movido a desafios, mergulhar nas desconhecidas águas da pedreira era brincadeira de criança. Fomos ao rio Pinheiros.

Entre as duas pistas da Marginal

Quem passasse pela ponte Cidade Universitária, na capital paulista, naquela quinta-feira e olhasse para baixo, mais precisamente para o rio Pinheiros, poderia achar que estava sonhando acordado ao vislumbrar a figura de um ser humano, paramentado como um astronauta, submergindo naquelas águas escuras. Às seis horas da manhã do dia 27 de março, Rafael mergulhou no rio com a sua “roupa seca” de nylon forrada de poliuretano soldado eletronicamente, com o objetivo de resgatar do fundo os objetos mais diversos e bizarros que pudessem ser encontrados no esgoto a céu aberto da maior metrópole brasileira. O mau cheiro do rio entrava pelas narinas e parecia chegar ao estômago, com escalas na pele e na garganta. Moscas mutantes faziam a alegria em acrobacias aéreas, centenas de carros soltavam fumaça negra nos arredores e a água [seria água aquela substância licorosa?] do rio parecia abrigar peixinhos saltitantes. Na verdade, as borbulhas fazem parte das estranhas reações químicas provocadas por milhares de dejetos - incluindo aí muito lixo químico - na superfície do rio.

Rafael mergulhou praticamente “na raça”, sem grandes preparos anteriores. Só uma coisa não rolou como deveria. Celso, assistente de Rafael, escorregou minutos antes do mergulho e, de moletom e camiseta, sem proteção nenhuma, caiu na imensidão borbulhante do rio. Foram minutos de pânico até que ele fosse retirado da água.

Logo depois, Rafael submergiu por vinte minutos. O saldo, além de uma hepatite, foi um triciclo dos anos 40 e uma luminária velha, vindos diretamente das profundezas. Enquanto se banhavam numa mistura de água com cloro desinfetante, depois do mergulho, Rafael e Celso riam da própria desgraça. “Quanta merda junta.”

Créditos

Imagem principal: Penna Prearo

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