Leonardo Sakamoto está à frente da ONG que é a maior pedra no sapato de empresários picaretas
Aos 33 anos, à frente de uma ONG respeitada no mundo todo, Leonardo Sakamoto luta contra o lado obscuro da sociedade de consumo – e coleciona inimigos poderosos. Revelando segredos e mentiras, bate forte onde mais dói: no bolso das empresas mais picaretas do país
Esqueça o “Será um pássaro? Será um avião?” e a sunga vermelha sobreposta na malha azul justinha. Nosso herói é um mezzo japa/mezzo italiano criado no Campo Limpo. Tem o tipo de corpo que as avós chamam de “forte” e manca nos dias mais frios, por conta de um pepino crônico na cabeca do fêmur direito. Mas um Leonardo Sakamoto incomoda muita gente, e como. Aos 33 anos, Léo preside uma ONG que é uma das maiores – se não a maior – pedra no sapato de muito empresário, político e fazendeiro picareta Brasil afora. Esse pedregulho sansei aperta o calo de gente que faz coisa feia de verdade, tipo manter trabalhadores escravos em pleno século 21, expulsar índios de suas terras ou desmatar grandes porções da Amazônia. E nosso homem sabe bem qual é a kriptonita da vida real. “Não fazemos protesto, não fechamos estrada, não ficamos na frente de usina nem ocupamos terra. Nada disso. Fazemos uma coisa que pra eles é muito pior: mexemos no bolso.”
A organização não governamental Repórter Brasil, da qual é presidente e fundador, faz um trabalho inédito: mapeia todo o caminho de cada produto, do comecinho da produção até sua casa. Assim eles descobrem quem acaba financiando, mesmo sem querer ou indiretamente, as mais cruéis condições de trabalho e as mais vorazes motosserras. Por exemplo: um carro da ONG faz tocaia na porta de uma fazenda de gado que desmata áreas gigantes e trata seus trabalhadores de forma desumana. Quando sai o caminhão com os bois, seguem o veículo até o frigorífico e, dali, continuam atrás do rastro da carne, documentando toda a logística até chegar à bandejinha de isopor com coxão mole do seu freezer. Com essa informação em mãos, batem direto na porta da presidência da rede de hipermercados: “Olha, sei que não deve ser de propósito, mas você está financiando o fim da Amazônia e o trabalho escravo”. O dono do supermercado (ou pelo menos a maioria deles) se apressa em cortar o frigorífico em questão de seu rol de distribuidores. Esse, por sua vez, cai em cima das fazendas irregulares – e das regulares também, para evitar novo problema. Como um bem-acabado exemplo de ativista na era do Wikileaks, Sakamoto sabe que é revelando segredos de empresas e governos que o sistema sente o tranco. “É gerado um impacto forte, que reverbera na cadeia toda”, explica.
Muito peixe grande já caiu na sua rede. A Cosan é um bom exemplo. Maior produtora de álcool e açúcar do Brasil, é responsável, entre outros, pelo fornecimento às marcas União e da Barra. Graças ao trabalho da turma de Sakamoto, foi flagrado trabalho escravo no interior de São Paulo, em uma usina que fornecia cana-de-açúcar à companhia. A Cosan foi corresponsabilizada, e a conta foi alta. Três dias após o flagra, Walmart e Carrefour cancelaram a compra de açúcar União e da Barra. “O Walmart do Brasil divulgou nota pública e ameaçou tirar os produtos das gôndolas. O BNDES, um dos nossos parceiros, bloqueou na hora o crédito da Cosan inteira, suspendendo R$ 800 milhões. Em um dia, a companhia caiu 6% na Bovespa e 3,5% na bolsa de Nova York.”
Sua trajetória de jornalismo heroico começou em seu TCC da faculdade de jornalismo da USP, o famoso Trabalho de Conclusão do Curso que muita gente faz meio nas coxas. O então estudante abriu uma linha direta com a guerrilha timorense, conseguiu documentos falsos, passou uma semana na selva com os combatentes contrários ao regime indonésio e de quebra entrevistou na cadeia o líder da resistência, Xanana Gusmão, poucos meses antes de ele se tornar o primeiro presidente do recém-liberto Timor-Leste. Passou de ano.
Depois, se embrenhou na guerra civil angolana, passou por um bando de outros países encrencados e rodou as regiões mais pobres do Brasil, fazendo reportagens por conta própria. “Eu vendia a ideia para algum editor e fazia tudo na raça, de ônibus.” Daí surgiu a ideia da Repórter Brasil. De lá pra cá se tornou requisitado na comunidade internacional que luta por direitos humanos.
Com iPhone, sem jipe Willys
Aos 29 anos, discursou sobre seu trabalho no exterior em Washington, no Congresso americano, simplesmente. Voltou lá ano passado. Também já falou no Parlamento alemão, em diversas organizações internacionais e recebeu prêmios como o Freedeom Awards 2008 – o principal do mundo a quem combate o trabalho escravo.
Ainda assim o rapaz não corresponde ao estereótipo do “ativista contra o sistema” ou algo que o valha. Mora sozinho em um apartamento no Sumaré, tem iPhone e laptop moderno e usa terno e gravata com muito mais frequência do que gostaria, ao menos em todas as visitas quase semanais a Brasília. Não tem carro por opção há anos – “me sentia muito culpado”–, mas lembra sentido de seu jipe Willys 1964 azul, “com capota conversível, lindo”. Recém-separado e sem filhos, sai à noite, toma uma cervejinha e se diverte como qualquer solteiro de sua idade. Aliás, foi numa madrugada de sexta pra sábado, em uma festa, que foi travada a primeira da nossa série de conversas. Seu maior diferencial, contudo, é saber usar as regras do jogo a favor de suas causas. O radicalismo de Sakamoto e sua equipe está na rigorosíssima apuração do que farejam. Como, por exemplo, no relatório divulgado recentemente que explica, por A + B, como o padrão de consumo de São Paulo é o responsável maior pelo desmatamento na Amazônia.
Na festa citada acima, Sakamoto estava cansado. Tinha chegado de Detroit há menos de 24 horas, onde fora libertar escravos do interior do Mato Grosso e Tocantins, entre outros estados. Isso mesmo. Léo foi à América do Norte tentar resolver uma treta forte do interiorzão do nosso norte. Falou com executivos de empresas como Ford, Toyota e GM. Pediu que pressionassem suas subsidiárias brasileiras para acabar com o trabalho escravo em sua cadeia de produção. “Nenhuma montadora no Brasil nos ouviu, então fomos aos EUA falar com os ‘chefes’”.
O problema, no caso, começa longe da sua garagem: nas carvoarias que abastecem os fornos das siderúrgicas onde é produzido o aço das peças dos nossos carros, encontrar gente tratada como animal é comum. “As grandes empresas sempre dizem que não têm nada com isso, que não têm como fiscalizar. Como assim? É a demanda deles por quantidade e custo baixo que gera tudo isso. Depois, porra, como uma ONG mequetrefe como a nossa consegue mapear tudo isso e eles não?”
Vale esclarecer. A palavra “escravo” remete a senzalas, grilhões, chibatadas. Hoje essa exploração assume outras formas – todas definidas por lei no Brasil. “O exemplo clássico é a servidão por dívida”, explica Sakamoto. “É aquela história de o cara ter uma dívida inicial sobre itens como passagem, ferramentas, alojamento e comida. Aí toda vez que vai receber o salário tem tantos descontos que não se livra nunca. Tem ainda a retenção de documentos ou o isolamento geográfico. O agenciador pega o cara no interior do Maranhão e joga ele no fundão do Pará, a 12 horas de barco de qualquer lugar. Mesmo que queira, não consegue sair de lá”, explica, enquanto mostra em seu iPad fotos horrorosas de condições consideradas escravagistas.
E eu com isso?
Triste constatação: é difícil achar um setor que não esteja “contaminado”. Mas há empresas que se preocupam em resolver o problema, assinaram um pacto e de fato se esforçam. É o caso, exemplifica Léo, de Pão de Açúcar, Walmart, Carrefour, Itaú, Petrobras, entre outras.
O ativista também tem noção de que seu trabalho, aliado a outras ações em prol de um mundo melhor, gera culpa e cobranças sem fim sobre quem, em princípio, não tem nada a ver com isso... como você, leitor. “As pessoas reclamam que é impossível seguir tudo o que falamos. Têm razão. O jeito é passar um corte racional, pessoal, escolher o que mais o preocupa. Se você for criterioso ao extremo, não come, não bebe, não se veste, não faz nada. Nada mesmo”, enfatiza, sério. “E tô responsabilizando todo mundo, não dá pra livrar ninguém. Tem que cobrar o produtor, o supermercado, as fazendas, os frigoríficos, os exportadores, a indústria... e o consumidor também.”
E segue com o diagnóstico de quem estudou a fundo a “doença”: “Dizem que ‘o consumidor está mais consciente’. Está nada. Todo mundo fala em tirar do poder político picareta mas ninguém fala em tirar do mercado empresa picareta”. E deixa a dica: “Quando você compra, deposita seu voto na empresa, na forma como aquela mercadoria foi produzida. É uma ferramenta que pode até ser mais forte do que o voto eleitoral, porque você tá ‘votando’ todo dia. O ato de compra é um ato político”.
Praga das plantações
A senadora pelo DEM de Tocantins Katia Abreu, famosa pela defesa dos interesses ruralistas, atacou Sakamoto em discurso. “Quero dizer-lhe, de público, que vou processá-lo por calúnia e difamação. O senhor é um irresponsável que mama nas tetas do governo, não tem crédito”, esbravejou na tribuna, em setembro de 2007. Presidente da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil, Katia se indignou com o flagra em um dos filiados, que mantinha escravos no Pará. Sakamoto comemorou abertamente a ameaça de processo, que permitiria mostrar todos os detalhes da barbárie do chegado de Katia. A ação nunca veio. “Ela me detesta de verdade”, diverte-se. “E tem gente de tudo que é canto me atacando”. O deputado Aldo Rebelo (PC do B), criticado por sua atuação como relator da revisão do código florestal, assinou artigo chamando o ativista de “vaca holandesa” (em uma analogia rocambolesca com subsídios europeus), o acusou de fazer “caricatura de opiniões” etc.
Léo, que não é filiado a partido algum nem tem a menor intenção de ser político, mantém postura crítica diante do governo federal. Sua ONG desenvolve ações em parceria com Ministério da Educação, Secretaria dos Direitos Humanos e bancos públicos, entre outros. Por outro lado, bate forte em iniciativas como a usina de Belo Monte e no Ministério da Agricultura. “Reinhold Stephanes [na pasta de 2007 a 2010] era um tosco”, decreta. E o atual ministro, Wagner Rossi? “É tosco também.”
O hábito de Léo de meter a boca, como era de se esperar, causa efeitos colaterais. Basta ver seu blog. Com o dobro de acessos do portal de sua ONG, chega a mais de 50 mil acessos em alguns posts e teve mês que bateu a casa do meio milhão de visitantes. Nos muitos comentários, coisas assim: “Para que libertar escravos se eles vão gastar com cachaça?”; “antes de falar mal de um pecuarista, saiba que ele coloca a comida na sua mesa”; “Volta para o Japão”; “você tem cara de pirralho” e segue. Léo libera quase tudo, e ainda se diverte fazendo posts bem-humorados comentando o best of de seus detratores.
O mundo vai acabar?
“Sim, o mundo está fodido de verdade [risos]. Nos esforçamos muito para ajustar o termostato do planeta pra função gratinar. E conseguimos, a Terra tá tostando. E as pessoas não ligam, acham que estarão mortas quando o mundo tiver virado um ovo frito.” Pelo raciocínio de Léo, vamos morrer pelo consumo. “Estamos produzindo como nunca e tudo vira lixo rapidamente. Tudo é produzido pra durar pouco, pra você comprar mais e logo. Você é se você tem. Se não tem, você não é. Vira um bosta. Não tem uma Brastemp? Você é um bosta. Não tem iPad? Você é um bosta. Não tem carro novo? E por aí vai...”
O agravante, diz Léo, é que há uma gigantesca massa emergente não só no Brasil, mas no mundo. “Aí o norte do planeta vai falar: ‘Vocês têm que consumir menos se não vai ferrar tudo.’. Aí o pessoal do sul, da periferia do mundo, vai responder com razão: ‘Durante séculos vocês poluíram à vontade, consumiram o que quiseram e têm um padrão de vida ótimo. Também queremos!’. E aí?”
Mas nosso herói vê uma pontinha de esperança (possivelmente sincera, já que sonha até em pôr um filho no mundo): “A solução passa por rediscutir o que é necessário, realmente preciso. O padrão das empresas e do consumo tem que mudar. Criamos as piores condições para o ser humano, temos que reverter”. Pede desculpas, atende o celular pela última vez durante o papo e completa: “Você acha que vai ter só convulsão ambiental? Tem também uma convulsão social que nos espreita no horizonte, e eu torço por ela. As pessoas que estão fora da festa em algum momento vão querer entrar, de uma forma ou de outra. Ou o mundo vai ser um lugar decente pra todo mundo ou não vai ser decente pra ninguém”.