A maratona aquática, presente nas Olimpíadas desde 2008, pode parecer amigável vista da TV. Abaixo do pelotão, entretanto, há uma intensa troca de sopapos, animais marinhos e histórico de morte
Em 2006, a medalhista olímpica e maratonista aquática Poliana Okimoto disputava uma de suas primeiras provas de longa distância no mar, em um trajeto de 5 km pela Copa do Mundo de Natação, na Itália, quando levou um soco forte contra a orelha. Franzina se comparada às concorrentes, Poliana, com 52 kg e 1,65 de altura, passou a se sentir cada vez mais tonta com o golpe recebido na região dos labirintos. "Percebi que aquele soco tinha estourado meu tímpano", explica à Trip. Apesar do golpe, Poliana conseguiu se desvencilhar do pelotão e se sagrar vice-campeã mundial na maratona aquática. "Até hoje não sei se foi intencional, mas sei que a menina que me bateu saiu campeã."
Dez anos depois, nas águas de Copacabana, o roteiro de agressão levou a atleta mais uma vez ao pódio. Após ter finalizado a prova em quarto lugar, Poliana descobriu que a francesa Aurélie Muller, até então terceira colocada na prova de 10 Km, foi desclassificada após juízes considerarem que ela havia "montado" em cima da adversária italiana, vencedora da medalha de prata. Poliana subiu uma posição, levando a primeira medalha olímpica do Brasil em maratonas aquáticas.
Árbitros, federações esportivas, técnicos e atletas já contam com o fator "porrada" em todas as provas de maratona aquática. Pela TV, a modalidade que ganhou destaque desde a estreia em Pequim (anteriormente, era um "braço" da natação), em 2008, pode parecer uma disputa amigável, mas embaixo d’água há uma intensa troca de tapas, socos, empurrões, tentativas de afogamento e outras táticas agressivas para tomar a dianteira. "Já vi gente passando gasolina nas pernas pro adversário não conseguir puxar para trás", conta a maratonista Catarina Ganzelli. Tentar coibir infrações é uma tarefa árdua para os juízes, que só podem acompanhar as baterias acima de um barco.
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Uma infração observada pelo chefe do júri é advertida por uma bandeira amarela, enquanto a segunda penalidade rende uma bandeira vermelha que desclassifica o competidor. "É mais ou menos como um um juiz de futebol. O árbitro pode ver uma falta, mas não marcar. Ou ver um lance normal e acabar expulsando", explica Márcio Latuf, técnico da nadadora Ana Marcela Cunha. Os braços musculosos e a força física de Ana garantem habilidade para furar as ondas e manter certo "respeito" dentro d’água. "Eu sempre digo para ela seguir o jogo mais limpo possível, mas não dá pra ser bobo. Se levar porrada demais, é só dá um ‘chega pra lá’ e continuar a prova", diz Latuf.
Quem não tem a mesma desenvoltura física para lidar com a pancadaria costuma arregimentar táticas mais defensivas que a de Ana. Uma delas é nadar pelas bordas do pelotão, avançando com um movimento triangular. Como nadadores de maratonas costumam treinar e disputar divididos por raias em piscinas de 800 a 1500 metros, os novatos no mar costumam levar a pior. Para diminuir o número de infrações, a Federação Internacional de Natação (Fina), órgão que regula a modalidade, passou a exigir barcas com júris e técnicos navegando mais próximo dos competidores.
Além do empenho em diminuir as infrações, a Fina tenta diminuir os casos de morte durante maratonas aquáticas. Em 2010, o americano Fran Crippen sofreu um ataque cardíaco em uma etapa da Copa do Mundo, nos Emirados Árabes. O motivo? A temperatura da água, que chegava a 30 graus de temperatura durante a etapa (naquele dia, o sol das arábias marcava 37°C). Ao seu lado estava o brasileiro Allan do Carmo, 27 anos. "Naquele dia, eu também passei mal. Meu corpo ficou fraco, me desidratei e saí da água direto para o hospital. Foi só lá que soube que o americano tinha morrido", diz Allan. O corpo de Crippen, medalhista de prata nos jogos Pan-americanos de 2003, só foi encontrado minutos depois do término da prova.
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A morte do competidor ajudou a estabelecer regras para diminuir os casos comuns de hipotermia ou hipertermia (quando o corpo superaquece dentro d’água). Nas Olimpíadas de Londres, em 2012, Poliana Okimoto nadava a braçadas quando começou a perder a consciência e ser levada em uma maca para a enfermaria. Era hipotermia. "Foi o pior momento da minha carreira", conta Poliana. Hoje, a prova só é realizada em águas com 16 a 31 graus de temperatura, além do uso de uma roupa especial para reter calor corporal ter sido permitido.
Energia extra
Em determinados pontos da prova, técnicos estendem a seus atletas uma vareta com suplementos, compostos elaborados com cafeína e carboidratos. Às vezes, um tapa adversário, proposital ou não, pode derrubar o envelope com a forcinha extra. Foi o que aconteceu com Ana Marcela no Rio de Janeiro, bicampeã mundial e eleita melhor nadadora do mundo pela Fina, que terminou a Olimpíada em 10° lugar na prova de 5 km quando a recarga caiu no mar. "Ela estava indo bem, mas nós sempre treinamos contando com esse reforço no meio da prova. Sem a comida, ela não conseguiu mais avançar", explica o técnico Lattuff.
Mesmo com regulações mais incisivas à tona, ainda há um elemento que as federações não conseguem controlar: os seres do mar. Em 2007, durante uma etapa australiana da Copa do Mundo, Ana Marcela foi atacada por águas-vivas. Já em 2011, na Patagônia, Poliana Okimoto teve que enfrentar animais de grande porte. "Ao nosso lado surgiu um gigantesco leão-marinho", conta. "Todas as 25 meninas passaram a gritar, mas os juízes sorriram e deixaram a prova continuar."
No fim das contas, ganha quem bater primeiro a mão em um pórtico localizado no mesmo ponto da largada, vencendo os esbarrões de outros vinte e cinco competidores à espreita por quase duas horas de trajeto em círculos. O medo de porradas, desmaios e animais marinhos, entretanto, não assusta quem se dispõe a vencer a corrida. "Na hora, você só sente adrenalina", conta Allan do Carmo. "Daí, você só vai e vai."
Créditos
Imagem principal: Roberto Castro / Brasil 2016