Objeto flutuante não identificado

por Luiz Filipe Tavares

Veterano da intervenção urbana, Guto Lacaz fala sobre arte, educação e São Paulo

Há mais de 30 anos na vanguarda das artes plásticas brasileiras, o nome de Guto Lacaz se confunde com a própria história das intervenções urbanas no país. Muitos anos antes da invenção do termo street art, ele já invadia os espaços da cidade com seus objetos e esculturas que beiram a surrealidade e que se encaixam com perfeição hermética em um ambiente como o da cidade de São Paulo, onde nasceu, cresceu e viu passar de terra da garoa a metrópole que nunca dorme. 

Obcecado pela água, o artista paulistano adora interferir em meios fluídos e seu mais novo trabalho transparece bem esse sentimento. A escultura cinética OFNIs: Objetos Flutuantes não-identificados foi apresentada pela primeira vez em São Paulo no último domingo, dia 4, e volta a singrar as águas do lago do Parque Ibirapuera no próximo domingo (11). Tratam-se de dois cubos brancos de tecido construídos em uma gaiola de metal com autonomia de navegação suficiente para percorrer toda a extensão do lago, em um contraponto certeiro entre forma e velocidade que atraem a atenção de admiradores e curiosos em geral.

Conversamos com o veterano artista paulista e falamos sobre a escultura, o ensino de arte nas escolas e o descaso da administração pública com a beleza hídrica que um dia reinou soberana sobre a cidade de São Paulo.

Trip - Sempre que alguém faz uma reportagem, ou crítica sobre seu trabalho as palavras paradoxal e absurdo aparecem. Qual é a beleza do paradoxo e do absurdo para você?
Guto Lacaz - Com razão! [risos] Eu trabalho nessa faixa da transgressão, do paradoxo, do absurdo e do surreal. Sempre nessas escolas relativas às vanguardas do começo do século passado. Eles são os meus avós: Duchamp, Dali, René Magritte, os construtivistas russos, os cartunistas... São formas que eu admirei de observar a vida e processar a realidade. Fui sempre me modelando por eles. Então eu olho o mundo e procuro reapresentá-lo de uma forma que vá produzir esses choques.

E a mostra dos OFNIs segue essa mesma lógica?
Com certeza. Já começa pelo nome. Porquê o objeto voador não identificado, em geral, é esférico ou elíptico e se desloca em altíssima velocidade. E os meus objetos são cúbicos, sólidos e platônicos, que se desloca em baixa velocidade. Então é uma obra que também trabalha com esses contrastes do absurdo. Isso sem falar no absurdo de ver dois cubos brancos se deslocando na superfície do lago, que é um espaço orgânico. Então é seguro dizer que esse tipo de absurdo me encanta. Romper uma visão que as pessoas tem para apresentar uma outra possibilidade.

Essa relação de forma e tempo que você é uma coisa que realmente chama a atenção das pessoas. Qual foi a maior inspiração para chegar nesse resultado?
Esse resultado nasceu em Brasília, em 2011, durante um evento para o qual eu fui convidado chamado Aberto Brasília: Intervenções Urbanas. Era uma mostra que dava uma verba para a criação das obras, com um orçamento bem apertado, e onde tínhamos apenas uma semana para montar os trabalhos. Então optei por usar caixas de isopor dessas de 170 litros para fazer um cubo cinético que deslizaria no Lago Paranoá. Uma coisa bem prática de montar. Então a ideia nasceu de ser uma coisa, barata, prática e muito fácil de fazer. O título veio dessa coisa de em Brasília existir muitos casos de avistamentos de naves e de ser uma cidade bem esotérica, então a obra conversava tanto com a arquitetura quanto com esses fenômenos que acontecem lá.  

 

"Tenho uma relação de amor e ódio com a cidade. São Paulo é uma cidade condenada. A gente não tem saída mais. Não há o que fazer aqui que vá melhorar a nossa vida."

 

Falando sobre a intervenção no Ibirapuera, como é ter uma obra sua integrando um dos maiores cartões postais da sua terra natal?
Eu tenho um carinho especial com o Ibirapuera porque eu fui à inauguração do parque, em 1954, no quarto centenário da cidade de São Paulo. Eu tenho até hoje uma revista O Cruzeiro sobre a inauguração. Eu tinha seis anos de idade, então é um lugar super emblemático para mim. Depois, em 1989, eu construí um auditório flutuante nesse mesmo lago e isso me marcou de vez. Eu meio que falei: “agora esse lago é meu”. Sempre pensei em voltar a apresentar uma obra no lago, mas as ideias não aparecem sempre assim. Então foi preciso que eu passasse por todo esse processo para ter esse retorno ao lago com esse outro trabalho completamente diferente. O pessoal da Prefeitura ainda perguntou se eu não queria fazer no lago da frente mas eu disse que não. Não quero competição com aquela fonte lá, que eu acho horrível [gargalhadas]. Fora que o lago de dentro é mais bonito e mais protegido do vento.

E você não gosta da fonte?
Não! Eu acho aquilo um crime urbano [risos]. É que paulista se acostuma com as coisas. Mas aquilo é muito cafona e mal resolvido, com as caixas acústicas todas aparentes. É tudo precário. Fora que eles tocam uma música todo domingo, alto, que o som chega até minha casa. E é uma seleção de hits! [mais risos]. É de doer...

Como é sua relação com São Paulo: paulistano orgulhoso ou paulistano envergonhado?
Não chega a ser vergonha, mas eu tenho uma relação de amor e ódio com a cidade. Eu acho que São Paulo é uma cidade condenada. A gente não tem saída mais. Não há o que fazer aqui que vá melhorar a nossa vida. Tudo está defasado. Nossa infraestrutura está decadente e não há investimento possível para reverter esse quadro. Por exemplo, a situação das fontes, que é uma luta que eu quero travar agora.

Como assim?
A única fonte que jorra água em São Paulo é essa que o Pão de Açúcar colocou no Ibirapuera. É uma perversão que está acontecendo com os bens urbanos na cidade. Em Lisboa, todas as fontes da cidade jorram água. Em Barcelona também. Em São Paulo não tem nenhuma. Todas estão secas porque a Prefeitura inventou o argumento de que as pessoas roubam as bombas e a parte elétrica dos motores, mas na verdade a gente sabe que é porque as pessoas que mais usam as fontes são os mendigos, para se banhar e lavar roupa. Então eles cortam a água para afastar os moradores de rua. Então a gente não tem e a gente já se acostumou. Uma das cidades mais hídricas do país era São Paulo, com dois rios grandes que foram canalizados e montes de fontes que foram desligadas. A gente não tem acesso a água natural em São Paulo.

 

"Para mim não existe esse lado de deslumbre com a arte. Arte é um ofício como qualquer outro. É que nem sapataria e marcenaria. É preciso praticar e investir"

 

Sim, isso é uma vergonha para a cidade...
Não é nem uma vergonha, é um crime. É uma sucessão de administradores insensíveis que foram tomando decisões erradas, decisões perversas. Quando você lembra como eram os rios você sente até uma tristeza. Hoje é tudo cimentado. Por isso que na primeira chuva eles se manifestam. São erros históricos. As fontes principalmente. É uma alegria ver água jorrando nas fontes. É é uma alegria que a gente não tem mais em São Paulo. É muito triste. Foram anos de decisões erradas que hoje são praticamente irreversíveis. É uma cidade de muita ostentação e pouca urbanidade. Eu fico triste de ver a cidade assim. Por mais que se invista, nunca vamos dar conta. Está tudo atrasado.

Pra mudarmos um pouco de assunto, você lecionou comunicação visual e desenho de arquitetura na Faculdade de Artes Plásticas da PUC Campinas por algum tempo. Você tem saudades de dar aula?
Olha, eu tenho saudade de aula mas não tenho nenhuma saudades da escola [risos]. A escola é um tabelião. Você perde mais tempo dando nota, fazendo chamada e fazendo reunião do que tendo o prazer de dar aula. Aí com o tempo eu fui saindo das escolas. Mas eu continuo lecionando em cursos livres. Na semana que vem darei um curso de introdução à escultura cinética no SESC Pompeia. É um curso de mecânica para artistas. Hoje eu tenho sete cursos preparados. Então quando uma instituição como o SESC se interessa por um deles, eles me convidam e eu vou. Assim não preciso dar nota, nem fazer chamada, nem nada disso. São só 20 alunos por aula, assim posso ter um bom tempo de dedicação a cada um e quem se inscreve o faz porque está interessado no assunto. Então muitos problemas que existem numa faculdade você elimina quando ministra um curso livre. Eu adoro ensinar, estar com pessoas que tem interesse em algo que eu sei. Para mim é muito bom. Sempre que me convidam eu vou [risos].

Como você vê a relação entre arte e academia? Você acha que é possível realmente ensinar arte na escola?
É possível sim. Eu mesmo aprendi muita arte na escola. É possível abrir a cabeça dos alunos, mostrar direções, pensamentos, modos de fazer arte... Eu acho que arte se ensina sim. Se ensina e se desperta. Se houver um professor que te motive, que faça você ver e se você quiser entrar, é possível. E para mim não existe esse lado de deslumbre com a arte. Arte é um ofício como qualquer outro. É que nem sapataria e marcenaria. É preciso praticar e investir. Eu acho que se ensina sim. Eu sempre aprendi muita arte na escola.
 
Depois de mais de 30 anos de dedicação a arte, qual o maior conselho que você pode dar para jovens com aspirações artísticas que querem trilhar um caminho dedicado às artes plásticas?
A palavra é dedicação. Não tem muito o que fazer. Tem que se concentrar e investir tempo. Na verdade não é nem investir, as pessoas que quiserem ser artistas serão arrebatadas por isso. Só vão pensar nisso. Só vão querer fazer isso. É um processo natural. Então quem tiver esse gene de ser artista vai ter que desenvolver isso e sentir essa necessidade. Essa pessoa vai precisar conquistar espaços e a própria vida vai modelar isso. Observar, perguntar e seguir em frente.

Veja abaixo os OFNIS em ação.

 

Vai lá: OFNIs - Objeto Flutuante Não Identificado, de Guto Lacaz
Quando: 
 11/03, domingo
Onde: Parque do Ibirapuera - Avenida Pedro Álvares Cabral, S/nº
Quanto: Grátis
Site: www.parquedoibirapuera.com

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