Nos moldes do A.A., um grupo se reúne no WhatsApp toda semana para falar sobre hipocondria, um transtorno cheio de peculiaridades
“Boa noite, pessoal. Declaro oficialmente aberta esta sala virtual de reuniões de recuperação de hipocondríacos anônimos”. Você leu bem: virtual. Isso significa, claro, que não há pessoas sentadas em círculo se entreolhando e compartilhando duras histórias de superação cara a cara. Já passam de sete da noite e vai começar minha primeira reunião online nos Hipocondríacos Anônimos (H.A.).
Deixo o celular no jeito para não apitar, já que reunião será pelo WhatsApp. É lá que as pessoas que se consideram hipocondríacas se reúnem todas às segundas e quartas à noite para, entre áudios e relatos, falarem sem constrangimentos ou vergonha sobre os bad days com a doença.
E dá pra ir bem fundo nos dias ruins. Para um hipocondríaco, uma queimação no estômago pode ser um sinal terrível de câncer e uma dor de cabeça, um ameaçador tumor mortal no cérebro. Uma dor nunca é apenas uma dor. Um corte não é apenas um corte. “A hipocondria é uma interpretação errônea de sensações corporais corriqueiras, que são percebidas como anormais, levando ao medo e à crença de se estar gravemente doente”, define José Atílio Bombana, psiquiatra do Departamento de Psiquiatria da Unifesp/EPM.
O H.A. se inspirou no programa de recuperação dos 12 passos do Alcoólicos Anônimos (A.A.), criado nos anos 1930 nos EUA. Descubro que os hipocondríacos são apenas uma das várias irmandades que foram criadas desde o surgimento do A. A. e que atuam nesse modelo de reuniões anônimas. Alguns exemplos são os Raivosos Anônimos, Devedores Anônimos, Neuróticos Anônimos e até mesmo os Introvertidos Anônimos. Algumas também fazem suas reuniões pelo WhatsApp.
Não existe nesses grupos um comando preestabelecido. Uma junta de serviço, ou seja, companheiros em recuperação mais experientes, se reveza na coordenação. A democracia e a horizontalidade são valores chave em todas as irmandades de 12 passos.
Eu, hipocondríaco
A verdade é que sou hipocondríaco e foi por isso que, numa busca no Google, achei o grupo. Às vezes, só de ouvir o nome de qualquer doença, qualquer mesmo, fico muito ansioso. Nessas horas, um gelo sobe pela espinha, um frio surge na barriga e saio em busca de diagnósticos na internet (o Dr. Google, para nós, tem sempre a resposta).
Nunca cheguei aos pés de um hipocondríaco clássico como o cineasta Woody Allen, que acorda às três da manhã e toca para o hospital por causa de um incômodo no pescoço. Ou como no caso do apresentador David Letterman, que gostava de ler o Manual Merck, material de referência para médicos há mais de um século, tentando descobrir qual doença poderia desenvolver. A meditação nos últimos anos tem me ajudado bastante a esfarelar esses impulsos hipocondríacos.
Mas fato é que o problema é real. Alguns classificam como frescura e dizem que os hipocondríacos estão apenas fingindo doenças para ganhar atenção. Mas a verdade é que o doente não desenvolve confiança no funcionamento eficiente do corpo e isso gera muito sofrimento.
Adiós, hipocondria
Na verdade, o termo hipocondria saiu oficialmente de cena em 2013, quando o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, referência mundial, foi atualizado. O conceito foi substituído por outros dois diagnósticos: o transtorno de sintomas somáticos, em que as pessoas tendem a manifestar níveis muito elevados de preocupação a respeito de doenças e avaliam seus sintomas corporais como ameaçadores, e o transtorno de ansiedade de doença, quando a pessoa tem comportamentos excessivos relacionados à saúde como, por exemplo, verificações repetidas em busca de sinais de doença.
Segundo esse mesmo Manual, a maioria dos hipocondríacos é hoje classificada como portadora de transtorno de sintomas somáticos, e, em uma minoria de casos, o diagnóstico é de transtorno de ansiedade. Ainda de acordo com o documento, não se sabe ao certo o número de pessoas que têm ambos os problemas e as estatísticas variam em torno de 5% a 7% para o primeiro e de 1,3% a 13% para o segundo.
Foi nessa aventura de me aceitar como hipocondríaco e entender como isso me afeta que entrei no grupo onde poderia desfilar on-line minhas angústias. Como eles gostam de dizer, a cura sai pela boca e entra pelos ouvidos.
De volta aos H.A.
Para quem está pela primeira vez em uma dessas irmandades, a linguagem pode soar esquisita: poder superior, adictos e evites são termos comuns nos áudios enviados no Hipocondríacos Anônimos. Todos os que estão na reunião pelo WhatsApp abrem o jogo e contam relatos e experiências. Cada um fala na sua vez, sem interrupções ou conselhos.
Antes de qualquer coisa, devemos primeiro ouvir os áudios enviados pela coordenadora da reunião. O primeiro fala da “oração da serenidade”, um mantra que existe em boa parte das salas de reuniões de A.A. pelo mundo. “Concedei-me, Senhor, a serenidade necessária para aceitar as coisa que não posso modificar”. É só depois de um tempo que as pessoas se apresentam e se candidatam a compartilhar algo. C., de 32 anos, de Santa Catarina, será a primeira a falar.
Resolvo procurá-la em particular e pergunto se ela topa participar da reportagem. Ela me diz acreditar que sua hipocondria tenha surgido depois da morte do irmão. Mãe de três filhas, passou pelas várias fases do transtorno: foi muitas vezes a vários médicos diferentes, fez uma infinidade de exames e sentiu pânico só de chegar perto de uma agulha. Encontrar o diagnóstico foi um desafio. Alguns médicos falaram em estresse pós-traumático com traços de depressão, outros em síndrome do pânico com traços de hipocondria. Mas tudo ainda está em aberto.
Mais pessoas falaram e a reunião, que somou 36 hipocondríacos, se aproximava do fim, lá pelas nove da noite. É, não foi desta vez que participei. Isso só rolou algumas semanas depois, quando resolvi sair de cima do muro e falar sobre a ansiedade que sinto quando alguém compartilha algum sintoma ou doença mais séria comigo. Contei sobre meu avô e sua farmacinha, onde ele vivia tomando seus remedinhos. Talvez isso tenha me afetado.
Dias depois, procuro R., a coordenadora virtual dos H.A. naquela primeira noite. “O H.A. mudou e muda a minha vida todos os dias”, contou. Lá ela fala sobre os problemas familiares e médicos que a cercam e encontra caminhos para se cuidar. Há seis anos R. faz terapia cognitivo-comportamental, que encoraja os pacientes a desafiarem cognições distorcidas e a mudarem padrões destrutivos de comportamento. “A psicoterapia é fundamental. Não há medicação específica para a hipocondria, mas sim para alguns sintomas associados. Os antidepressivos são úteis em alguns casos, assim como os ansiolíticos em outros”, explica o psiquiatra Atílio Bombana.
Grupos de conversa como o H.A. são, para muita gente, a única alternativa disponível e, portanto, têm papel fundamental. “São ferramentas muito úteis, ajudam o paciente a não se ver só no mundo”, explica o psiquiatra Márcio Bernik, coordenador do Ambulatório de Ansiedade do Hospital das Clínicas de São Paulo. O que eu sei é que, sempre que um assombro hipocondríaco ventila na minha mente, me lembro do grupo e logo me sinto melhor.
Créditos
Imagem principal: Heitor Loureiro