Caramuru: ”uma sociedade educada jamais enfiaria seus mais velhos em casas de repouso”
Estamos nos tornando uma sociedade sem passado. Não falo do “grande passado”, aquele que livros de história e os filmes gravam em nós, em geral como mitos. Falo do micropassado, da história de cada família, de cada um. Você sabe quem foram seus bisavós, o nome deles? A história de sua rua? Conhece alguma criança que se disponha a ouvir os causos dos avós em vez de tentar passar de nível no videogame? E quando os velhinhos começam a dar trabalho, você acha errado interná-los em casas de repouso, para não perturbar e morrer depressa? E, pense bem, pode ser saudável uma sociedade que enfia anciãos em casas de repouso, que agradece a eles dessa forma? Que rasga o conhecimento deles? Não temos tempo, nossas casas não têm espaço, velhos não cabem. Nos organizamos para viver em núcleos familiares mínimos, com a alma preenchida pela rotina. E a sabedoria, antes prerrogativa dos que já viveram muito, virou atributo adolescente. Uma sociedade bem-educada, acredito, não escolheria esses caminhos.
Fala-se muito em educação. Em como o
Brasil é defasado, em como o modelo coreano é melhor que o nosso, em como a internet pode ajudar a queimar etapas, em como a educação a distância pode ser tão boa quanto a presencial, em como nossas deficiências nessa área tiram competitividade nacional diante de outros países; e, por outro lado, em como, apesar de tudo, temos melhorado nos últimos anos. São todas questões relevantes e merecedoras de debates. Ótimo.
"Inutilidades" curriculares
Mas de que educação estamos falando? Como escreveu o filósofo inglês Roger Bacon há quase 800 anos, com total atualidade: “Doutores estão por toda parte, em cada castelo, em cada cidade, e no entanto nunca se viu tanta ignorância e tanto erro”. Às vezes parece que o que se quer é, apenas, treinar as pessoas para que elas possam produzir mais. E as pessoas ficam felizes, porque no fundo o que elas querem é, apenas, consumir mais. Educar deveria almejar mais do que isso. E a grade curricular bem que poderia incluir certas “inutilidades”, nas quais os velhinhos poderiam ajudar muito. Antigas receitas culinárias, rodas de conversa, tanta coisa... Eu conheço uma velhinha caiçara em Ubatuba, por exemplo, que sabe tudo sobre as ervas medicinais da mata atlântica. Nem a filha nem os netos herdaram esse conhecimento, que tem boa chance de morrer com ela. E por que um saber assim não poderia ser levado para uma sala de aula?
Se não acharmos que poderemos aprender com os mais velhos enquanto cuidamos deles, cometeremos uma série de erros que poderiam ser evitados e ao mesmo tempo estaremos ensinando aos nossos filhos que experiência, respeito e afeto não são importantes. Quando envelhecermos, será a nossa vez de sermos jogados de lado em casas de repouso, aquelas máquinas de extermínio de velhinhos, passando a ser visitados por filhos e netos entediados no Dia dos Pais, das Mães, no Natal... E o tempo voa. Não vamos nos iludir: enquanto não mudarmos alguns dos fundamentos de nossa sociedade, o que estaremos dando e recebendo não se chama educação, mas adestramento.
André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br
*Esta coluna é dedicada à memória de minha tia Lili e a todos os velhinhos que vivem seus derradeiros dias em asilos