Faça amor, não faça guerra

por Juliana Sayuri

Em O Homem Ridículo, Marcelo Rubens Paiva revisita suas crônicas à luz da recente onda feminista

Era 2009, eu chorava um fim de namoro e Marcelo Rubens Paiva me abraçou e me consolou: “Na esquina em que se beijaram uma vez, lá está ele, na sombra perdida pela luz, na poeira suspensa, na revolta da memória inconformada. Uma lembrança. Na solidão do domingo, lá vem ele, volta, com lamento, um quase desespero, e penso nos planos perdidos, que vida sem sentido... No teatro, no palco de história de amor, no cinema, na tela com beijos e risos, na TV, que inveja... Já tive um amor igual”, ele escreveu para mim – e para milhares de leitores de sua coluna no Caderno2, do jornal O Estado de S. Paulo. “O amor não acaba, muda. O amor não será, é. O amor está. Foi”, sentenciou.

A crônica “O amor não acaba” foi uma resposta otimista às famosas linhas de Paulo Mendes Campos, “O amor acaba”.

Nas Páginas Vermelhas da Tpm de 2011, o colunista comentou que era “conselheiro sentimental” de 20-30 amigas, entre elas ex-namoradas. É fácil imaginá-lo na condição: dramaturgo e boêmio assumido, caçula de uma família de quatro irmãs, o escritor paulistano ficou famoso por ouvir, observar e escrever sensivelmente sobre mulheres.

Autor de Feliz Ano Velho (best-seller da década de 1980 que relata o acidente que o deixou tetraplégico aos 20 anos) e Ainda Estou Aqui (livro de 2015 que trata do desaparecimento de seu pai, o engenheiro Rubens Paiva, deputado federal cassado no golpe de 1964, torturado e morto por militares), Marcelo desengavetou contos e crônicas para compor o recém-lançado O Homem Ridículo.

O livro traz versões repaginadas de textos à luz da recente onda feminista – tornando-os “politicamente corretos”, como o cronista de 59 anos definiu ao jornal Folha de S.Paulo. "Senti que era preciso fazer adaptações de acordo com esse novo discurso, que inclui a discussão sobre igualdade de gênero, lugar de fala e outras ideias importantes do feminismo atual", conta à Trip

A crônica “E daí que acaba”, de março de 2010, está no livro. Nela, o autor defende a “causa” do romance, apesar dos pesares, pedindo “trégua” e lembrando o quão “tolos e infantis” podem ser os homens. Noutras, mostra o quão ridículo, lindo e fortuito (não necessariamente nesta ordem) pode ser o amor.

“Sempre serei otimista. O amor vai vencer todas as guerras. Se é para deixar uma mensagem neste mundo, que seja esta: faça amor, não faça guerra”, diz nesta entrevista à Trip.

Tpm. Nas Páginas Vermelhas de setembro de 2011, você comentou que era ‘conselheiro sentimental’ de 20-30 amigas. Oito anos depois, ainda é?
Marcelo Rubens Paiva. Agora estou mais para “paciente” do que “conselheiro”. Hoje em dia, eu é que encosto a cabeça no ombro das amigas para pedir conselho, para ouvir o que elas têm a dizer. Estou quase na casa dos 60 e vejo que tenho muito a aprender sobre relacionamentos amorosos. Estou separado desde o ano passado e voltei a viver situações, digamos, nesse campo. E o mundo mudou nesses quase dez anos, toda a dinâmica das relações mudou. É o mercado do amor nos novos tempos. As pessoas não se olham mais nos olhos. Ficam presas no seu próprio universo, no seu umbigo, na sua bolha social, no metrô, no café. Antigamente, as pessoas se olhavam e se paqueravam. Hoje, fica cada um com seu celular na mão e o fone encaixado no ouvido. Pessoas, saiam das redes sociais e olhem para frente, olhem para os lados, a vida pode surpreender vocês. Não me inscrevi em nenhum app de relacionamento, pois não me vejo nesse mercado; minhas amigas também não. Prefiro sair e conversar. Mas noto que, várias vezes, eu estou ali, mas ela, a pessoa está em outro mundo.

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Na época, você dizia que, diante de mulheres mais independentes, os homens precisavam ser mais sensíveis – senão elas iam embora. De lá para cá, com a nova onda feminista, mudou muito?
Isso se acirrou. Hoje, as mulheres estão mais exigentes — e com razão. Querem respeito, querem traçar um caminho pessoal independente da opinião de qualquer homem. Não se submetem a papéis antigos e questionam quem tenta submetê-las. É um novo discurso, que está no dia a dia de todo mundo. Os homens precisam acordar para esses novos tempos. Não é uma questão de “politicamente correto”, mas “politicamente necessário”.

Que tipo de atualizações você fez nas crônicas para o novo livro?
Há textos novos, textos de outros livros e textos que reeditei. Senti que era preciso fazer adaptações de acordo com esse novo discurso, que inclui a discussão sobre igualdade de gênero, lugar de fala e outras ideias importantes do feminismo atual. Procurei adaptar os textos a uma linha que não se distingue um “papel” para o homem e outro para a mulher. Todos nós vivemos dilemas diários: de amor, de futebol, de política. Aquele tom “ah, mulher é isso, homem é aquilo” não dá mais. Isso se mostrou preconceituoso com o tempo. Afinal, existem homens e homens, assim como existem mulheres e mulheres. Lembrando o título do livro, existem homens ridículos e mulheres ridículas —  é só pensar em mulheres machistas ou antifeministas, ou em homens que continuam a defender discursos misóginos ou homofóbicos. E nós, homens, precisamos aprender: amigos, não há graça nenhuma em piada sexista, racista ou homofóbica. Tudo isso influencia todo tipo de relacionamento, inclusive interpessoal. Vários fatores podem ser impedimentos de relações amorosas e a política é um delas. Foi de olho nessas generalizações sobre os “papéis” masculinos e femininos que reescrevi os textos.

O livro inclui textos que tratam de "tipos ideais", feminino ("Três É Bom", por exemplo) e masculino ("O Homem Ideal"). Uma das crônicas ("A Garota de Preto") inclusive pede "licença poética" para "generalizações literárias". A ressalva também está nesse contexto de desconstruir estereótipos sobre a mulher, por exemplo?
Exatamente. Por muito tempo, o mundo foi dominado, narrado por vozes masculinas: homens são maioria nas estantes literárias, nas colunas de jornais. Isso é um disparate. É a famosa história que “mulher não joga futebol”, “mulher não gosta de futebol”. Sou da época que o futebol feminino era “proibido”: diziam que era muito violento para elas. E hoje o futebol feminino é incrível. Em alguns países, como nos Estados Unidos, é até mais popular. No Brasil, é potência internacional. Por muito tempo, o mundo foi definido de acordo com decisões de um gabinete cheio de homens. A questão do aborto, por exemplo, que é discutida em cortes predominantemente masculinas e congressos maciçamente masculinos. Seria diferente se esse tema, que provoca impactos na vida da mulher, fosse discutido por um tribunal ou um congresso com presença feminina forte, não seria? O que estamos aprendendo, ou tentando aprender, hoje é isso: ouvir o que as mulheres têm a dizer. Essa premissa está no movimento #MeToo, no #AgoraÉQueSãoElas, no #EleNão. E uma das coisas que aprendi que elas estão dizendo é: não queremos ser assediadas nas ruas, minha minissaia não é um convite, não estou procurando namorado nenhum.

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Uma das crônicas narra um episódio durante uma viagem de ônibus em que um homem e uma mulher flertam. A certo ponto, o narrador diz: "Ela deixou. Ela quis". Esta passagem me lembrou a discussão sobre assédio. "Nem sempre têm certeza de que os sinais são de já pode beijar", escreveu a jornalista Mariliz Pereira Jorge, na sua coluna na Folha de S.Paulo, por exemplo, sobre a linha tênue entre flerte e assédio atualmente. Como você vê essas questões?
Outro dia vi uma mulher linda na rua. O Marcelo de 20 anos atrás iria lá para dizer: “Nossa, como você está linda”. Eu, Marcelo, não estaria necessariamente paquerando. Talvez estivesse apenas destacando um belo vestido, lindo e colorido em uma cidade tão soturna quanto São Paulo. Mas o Marcelo de hoje já pensa: quem disse que essa mulher quer ser elogiada, quer ouvir minha opinião sobre qualquer coisa e o que dirá do vestido dela? No fundo, é bastante simples aprender as novas regras de comportamento. Em 1994-1995, morei nos Estados Unidos, no auge do movimento Não É Não. Fazia pouco tempo que Mike Tyson havia sido preso, acusado de estupro. Era a voz dele contra a voz dela — e a voz dela dizia que era para parar. Na época, muita gente ainda não entendia o limite entre a paquera e o assédio. Foi nesse contexto que, no primeiro dia na universidade americana, recebi um panfleto, um tipo de manual sobre o que era assédio. E a regra se resume a uma frase só: não é não. A partir do momento em que uma mulher diz não, o homem precisa ouvir não. Este é o limite.

Por fim, ainda é otimista sobre o amor?
Bastante. Sempre serei. O amor vai vencer todas as guerras. Se é para deixar uma mensagem neste mundo, que seja esta: faça amor, não faça guerra.

 

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