Dois repórteres da Trip registram a ousadia e o protesto dos surfistas ferroviários no Rio
Manhã cinza no Rio de Janeiro. A primeira impressão é de que se está chegando em algum lugar do futuro, caótico, com milhares de pessoas subindo e descendo escadas, entando e saindo apressadas dos trens superlotados. Subúrbios, Nilópolis, Mesquita, Édson Passos, São Cristóvão, Leopoldina, grids de largada para uma maratona que dura cerca de quatro horas até o centro da cidade. Esse é o clima para a chegada dos primeiros atletas dos trilhos urbanos, os surfistas ferroviários, que enfrentam a superlotação pulando da plataforma até a capota dos trens.
Agachados ou em pé, fazendo estilo como se estivessem surfando uma onda, os atletas descobrem aí a sensação de deslizar no espaço, o tesão do vento na cara, a 80 quilômeros por hora. O destino é o local de trabalho, que pode ou não ser alcançado. Vai depender dos obstáculos: linhas de corrente elétrica, a cerca de um palmo da cabeça, ou um túnel inesperado, ou um trem em sentido contrário, ou a repressão policial. Centenas de garotos, entre dez e 20 anos, que descobrem a adrenalina como forma de protesto. Imagens lisérgicas, chocantes, matéria-prima para um filme de Ridley Scott. O "surfista" Jorge Peixe dá o enredo:
– Isso aqui é só o início da revolta do povo!
A morte do lado
Diariamente, um milhão e duzentos mil habitantes do Rio enfrentam a guerra nas plataformas ferroviárias. Dentro dos vagões o espaço é tão pequeno que quem usa óculos leva desvantagem.
A tensão só pode ser contida porque existe complacência nessa miséria, porque não há outra fora de se locomover na cidade.
As velhas levam pisões, desembrulham palavrões cabeludos enquanto dois ou três malucos conseguem a proeza de jogar baralho, em pé, colados uns nos outros. Tudo muito pouco pra quem tem menos de 20 e uma porrada de sonhos na cabeça.
Um esporte de 4 mil volts
Ano passado, a Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU) registrou 465 acidentes de surfistas ferroviários. É bem mais do que uma tragédia por dia. Só este ano, até o mês de abril, a soma era de 60 mortes apenas no Ramal Japeri, sem incluir aí feridos e inválidos.
"Se o trem viesse vazio, a gente ia andar dentro dele, e não lá em cima, arriscando a vida. E o cara não pode dar mole, aí em cima não tem esperto"
A janela é a saída. Alguns movimentos ágeis são o bastante pra se alcançar a capota ou, no mínimo, a lateral do trem. O trilho é feito um brilho que não tem fim, a morte vai do lado o tempo todo, na reta, na curva, disfarçada no escuro do dia às 5 ou 6 da manhã. Jorge Peixe, Bazuca, Formigão, Japonês e Rambo 3 são identidades secretas de garotos que moram longe do trabalho, ganham em média o miserável salário mínimo e são, aos montes, subempregados. E quando chega o trem, sempre lotado, não há tempo pra esperar o próximo, não há saco pra aguentar atrasos, não porque não subir na capota. A sensação de liberdade garante o handcap pra encarar o perigo. É como dropar uma onda - e é como eles se expressam contra as condições nojentas do transporte urbano.
Um descuido significa uma carga de 4 mil volts nos fios. Uma curva repentina, uma distração,e o atleta morre estampado na parede do túnel. Algo que exige técnica, concentração, ousadia e determinação comparavéis àquelas que fazem caras altos e atléticos droparem Waimea em dias de ondas grandes. Um esporte de alto risco.
"Isso começou como uma necessidade. Agora tá virando esporte e o cara tem que saber fazer"
O surf dos trens já está fazendo filhos. Começam a aparecer os primeiros surfistas rodoviários: garotos nos ônibus, agarrados ou pendurados do lado de fora, a única maneira de enfrentar a superlotação dos transportes coletivos na hora do rush carioca.
Miséria é crime
Metade das crianças do Terceiro Mundo não chega aos 5 anos. Pieter Botha, o primeiro ministro da África do Sul, acha o fim do apartheid "uma bobagem". Nenhum dos surfistas ferroviários sabe isso na ponta da língua, mas todos tem um sonho em comum, é simples: melhores condições de vida.
"Eu nunca deixei minha mãe andar nesses trens. Quando ela precisa ir até o Centro, eu dou dinheiro pra ela ir de ônibus. De trem ela não anda"
O Ramal Japeri é um dos mais congestionados do Rio. É aí que se encontram muitos altetas urbanos, todo dia. Os "surfistas" não têm líderes, mas são unidos e organizados o suficiente para se ajudarem quando preciso. Alguns possuem uma "carteira de habilitação", que dá certo status nas comunidades dos subúrbios, porém não vale nada para a polícia. Aliás, a hora é de repressão. Os garotos estão enfrentando a violência em dose dupla, primeiro na porrada mesmo, dura e seca, e depois nas linhas tortas dos tribunais. Uma nova lei torna a reincidência dos "surfistas" crime inafiançável. Ou seja, quem for agarrado arriscando a vida por falta de transporte digno, aqui no Brasil, poderá estorricar na cadeia por até cinco anos.
Só que a investida corajosa dos "surfistas" está pegando despreparada até a Lei. O delegado manda prender. O promotor argumenta: "Se surfistas de trem causam danos ao tráfego ferroviário, surfistas na praia causam, então, perigo ao tráfego marítimo". E o juiz despacha: "Não há nenhuma referência pelo condutor ou pelas testemunhas de que os indiciados estivessem colocando em perigo a segurança do tráfego ferroviário. O fato de estarem viajando como pingentes e arriscando suas vidas é penalmente irrelevante. O nosso direito não pune a autolesão. O surfista de trem está tentando o suicídio, o que é uma infração penal."
E em Japeri as ondas continuam quebrando, todo dia, bem cedinho.
Durante uma semana, os repórteres da Trip, Fernando Costa Netto e Marcos Prado, respiraram o dia a dia das plataformas ferroviárias do subúrbio do Rio. Mais do que simplesmente registrar a ousadia, a coragem dos surfistas ferroviários, eles conseguiram estampar nesta reportagem a situação-desespero que acompanha todo dia mais de um milhão de usuários de transportes ferroviários em Corcovado City. Para isso, nada foi evitado. Inclusive o risco – ou a glória – de perder a vida ao lados dos "surfistas", subindo na capota dos trens.
*No momento exato em que fechávamos esta reportagem, um telefonema na redação informava sobre a morte de Rambo 3 (Stallone). Ele escorregou da capota do trem e caiu na linha.
Créditos
Imagem principal: Marcos Prado