Será que o excesso de grana está deixando o futebol um jogo pesado demais?

 

No princípio era a bola, e Deus viu que a bola era boa. As pessoas podiam jogar, assistir, era divertido. Mas então, trazidos pela serpente, vieram para o jogo os sete pecados capitais: vaidade, inveja, ira, preguiça, avareza, gula (pelo menos no caso do Ronaldo) e luxúria. E foi assim que a confusão se instalou: o amor à camisa (que era bom) se transformou em obsessão por contratos milionários. Os governos e as grandes empresas passaram a construir babilônias em torno do esporte para faturar e manipular os fiéis. A celebração da vitória, que era boa, virou churrascada com pagode. As mulheres dos jogadores ficaram todas loiras. Marmanjos passaram a gastar fortunas colecionando álbuns de figurinhas da Copa...

 

Diante de tantas mudanças, sociólogos, antropólogos e psicólogos (os novos teólogos) passaram a estudar o assunto, buscando respostas. Eu era pequeno, mas me lembro que, em 1970, torcer pelo Brasil era incentivar o sinistro governo Médici. Mas era impossível não torcer, e não são poucos os relatos de presos políticos que, mesmo sentindo (literalmente) a questão na pele, torciam feito loucos. Naquela época reinava a dualidade “esporte bacana x ópio do povo” e havia uma esquerda mais empedernida que não relaxava nunca. Agora que caíram o muro de Berlim e os alambrados do apartheid, estamos todos na África, de novo torcendo e sofrendo a cada jogo. O que não quer dizer que os problemas teológicos tenham sido resolvidos.

Vejam-se os patrocínios, que ocuparam sem limites as duas dimensões do infinito: tempo e espaço. A cada centímetro e a cada segundo, no espetáculo, anuncia-se, sem constrangimento, quem é o dono da bola. Os jogos não são apenas entre times, são entre marcas, sendo Nike, Adidas e Puma apenas os exemplos mais óbvios. Poderão os patrocinadores manipular escalações e, pior, resultados? Ora, ora... E o dinheiro envolvido no entorno, na construção de estádios e em infraestrutura? Assim como nas guerras, fortunas são feitas em Copas do Mundo e ninguém parece ligar, pois, afinal, “todos juntos vamos, pra frente, Brasil...”.

LEVIATÃ BÍBLICO

Finalmente, há a questão “governo”, que não se resume a ditadores tirando vantagem dos jogos, como o nosso Médici em 1970 e o argentino Videla em 1978. Sim, há outras coisinhas. Se nosso olho de torcedor está agora ligado na África, o de cidadão deveria estar voltado aqui para casa, atento a 2014. Os executivos da Fifa têm dado repetidas indicações de preocupação com a calma com que o Gigante pela Própria Natureza vem encarando obras & prazos. O atraso atual já seria, segundo eles, de dois anos. E o “custo Copa no Brasil” é estimado em 120% maior do que o da África do Sul. O Líder não se mostra preocupado: primeiro porque sempre contou com a sorte; depois porque se algo der errado ele não estará mais no cargo quando a bomba estourar; e, finalmente, como homem esclarecido que é, o Líder talvez nem mesmo acredite que o mundo passe de 2012.

O fato é que, no futebol, o business cresceu demais. Como um feroz Leviatã bíblico, tem múltiplos e pegajosos membros e não vai deixar que nos livremos dele. Com tanta coisa em jogo, embora eu tente, às vezes fica difícil apenas curtir o lance, recuperando a magia que havia lá atrás, na infância, quando eu ia com meu avô ao estádio ver o Tricolor de Mirandinha bater no Palmeiras de Leivinha (isso, pelo menos, não mudou) e quando a camisa amarela da seleção, livre de grifes, representava apenas tudo e um pouco mais.

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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