A atriz e escritora Fernanda Torres conta como conheceu Zé Maria, dono da maior pousada de Fernando de Noronha: ”Meu amigo, a quem devo uma ilha”
Cruzei com Zé Maria um ano antes de conhecê-lo. Antes de saber que ele faria de Fernando de Noronha a minha segunda morada e que seríamos tão próximos, tão amigos. Desfilamos juntos pela Mangueira em 1995, ano em que a escola homenageou o arquipélago. O Zé saiu como destaque, de Américo Vespúcio, e eu no chão, carregando um jacaré nas costas.
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Um ano depois, comigo sofrendo de uma dor de corno daquelas que parecem que não vão passar nunca, Luiz Fernando Guimarães, sempre ele, me carregou para Noronha, a fim de salvar a amiga. Nos hospedamos no Zé Maria, um misto de pousada com casa de tio, uma residência pré-fabricada modesta, verdadeiro luxo para os padrões locais da época, com rede pendurada nas amendoeiras da frente, chão de barro pisado lá fora e vista para o pico mais notório da ilha.
Quando os quartos lotavam, o Zé dormia no sofá, sem constrangimento. A comida era farta, o que era raro ali, e ele fazia a apresentação dos pratos na mesa de jantar da família, uma tradição que ainda mantém, na mesma sala que, reformada, serve de sede para os bangalôs hoje erguidos.
Graças a esse pernambucano mítico, namorei um golfinho. O Zé nos levou de barco até a enseada do Sancho e, numa chata apertada, que ele usava para pescar em alto-mar sozinho, trouxe o bando até a gente. Com ares de Sean Connery dos trópicos, o Zé voltou cercado de rotatores que davam saltos no ar. Nunca esqueci a visão, parecia a Fontana de Trevi. Pulei na água em meio a centenas daqueles animais dóceis, inteligentes, e um, sentindo a carência da moça, resolveu me fazer companhia. Nadamos juntos por mais de hora, depois, como um cavalheiro que deixa a dama no portão, meu consorte me trouxe de volta para a embarcação e eu enterrei o antigo amor para sempre.
Não é mais possível mergulhar com os golfinhos. O número de visitantes quintuplicou no parque e regras rígidas impedem a aproximação. Acho certo, certíssimo. Sou grata, no entanto, pelas chances que tive de nadar entre eles, momentos áureos na minha vida, dos quais me lembrarei na hora da morte. Em especial daquele, o primeiro, que devo ao Zé.
Somos amigos desde então. Voltei incontáveis vezes ao paraíso, casei, tive filhos, ele também aquietou o facho com Ana Cláudia, e chegamos a fazer uma versão cinematográfica de bolso da Tempestade, de Shakespeare, com o Zé no papel de Próspero.
Se ele fosse um peixe, seria um tubarão-tigre, não escondo. É um pescador convicto e quando a gente mergulha de garrafa, ele pede para não dizer onde viu um cardume, porque lhe dá ganas de ir lá fisgar. Me lembro do dia que eu o vi chegando no porto com um marlim gigantesco, maior do que ele, na mão. O Zé havia passado a noite na tal chatinha a motor, a milhas da costa, cansando o bicho. Ele e Deus, como no O velho e o mar.
O homem tem alma de coronel, coração de donzela e um talento que eu nunca vi para fazer amigos. É onívoro em matéria de tribos, te trata como um colega de infância e reconhece o seu estado de espírito sem precisar trocar um bom dia. É um cabra macho, macho, macho, macho, porém sensível, desses que, de vez em quando, enche os olhos d’água.
O Zé chegou em Noronha muito antes do arquipélago explodir como destino turístico. Foi tomado pela ilha e teve a coragem de largar tudo e ficar. Trouxe o supermercado, fez a pousada, hoje tem barcos que suprem a população, desbravou aquela terra como um conquistador, um Vespúcio.
Zé Maria Vespúcio. Meu parente, meu amigo, a quem devo uma ilha.
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