O Oscar brasileiro

Paulo Lima
Giuliano Cedroni
Pôla Pazzanese
José Sacchetta
Rafic Farah

por Paulo Lima
Giuliano Cedroni
Pôla Pazzanese
José Sacchetta
Rafic Farah
Trip #85

Oscar Niemeyer tem 93 anos, mas essa não é a maneira mais adequada de dizer que ele viveu muito. “Arquitetura é passatempo. A vida é mais importante”

Oscar Niemeyer não aguenta mais dar entrevistas.

Aos 93 anos, o construtor de Brasília tem uma filha, 5 netos, 11 bisnetos e 2 tataranetos, e trabalha diariamente em seu escritório na cobertura de um prediozinho verde-claro, de fachada curvilínea, na orla de Copacabana. Lembra uma pequena onda num mar de edifícios ostensivos.

Carioca e comunista convicto – Fidel Castro já disse que ele e Niemeyer são os dois últimos comunas do mundo –, o arquiteto é um crítico feroz do sistema capitalista e da sociedade de consumo, defende a revolução socia­lista e diz que sempre esteve do lado dos pobres.

Apesar da perseguição política de que foi vítima, incluindo um período no exílio, Oscar Niemeyer nunca deixou de ter seus projetos de arquitetura aprovados no Brasil. Nem mesmo no auge da ditadura militar que se instalou em 1964, na capital recém-inaugurada.

O tempo vivido fora do país aumentou a popularidade do arquiteto, que fincou obras em 5 continentes, tornando-se um dos brasileiros mais conhecidos de todos os tempos. Entre as suas construções mais célebres estão a sede das Nações Unidas, em Nova York, a Catedral de Brasília e os palácios da Alvorada e do Itamaraty. Em São Paulo, Niemeyer projetou o parque Ibirapuera e o Memorial da América Latina; no Rio, o Sambódromo; em Belo Horizonte, a Pampulha.

A diversificação de seus trabalhos é impressionante e inclui igrejas, mesquitas, hotéis, hospitais, museus, universidades, fábricas, ponte em Veneza, aldeia no deserto de Israel, pirâmide invertida na Venezuela, a sede do Partido Comunista Francês, Cieps, estádio de futebol, aeroporto, caixa d’água e monumentos públicos de invariável caráter revolucionário, na temática e nas formas.

Apontado diversas vezes como um dos 5 principais arquitetos do século XX – os outros teriam sido o suíço Le Corbusier, o finlandês Alvar Aalto, o norte-americano Frank Lloyd Wright e o alemão Ludwig Mies van der Rohe –, Oscar Niemeyer Soares Filho garante que hoje só conversa com jornalista se o assunto interessar. No final de novembro, ele recebeu a Trip para uma entrevista exclusiva, em que fala de engajamento político, arquitetura, velhice e juventude.

Trip: O que te dá prazer hoje em dia? Niemeyer Encontrar os amigos, bater papo, ir a um bar, me divertir dentro do que a idade permite. Não dá pra ficar sentado esperando, tem que estar sempre atento. Por exemplo, agora estou fazendo um artigo para um jornal. Não é bem por prazer, é para alertar o estudante de arquitetura, tenho que ser correto com ele, falar de outras coisas. Estou fazendo um artigo sobre o pessoal da guerrilha colombiana que esteve aqui no escritório. Eles falaram sobre o programa deles, contaram que observam aviões norte-americanos sobrevoando as cidades, ameaçando a soberania do nosso país e também a do deles. Falaram sobre a Amazônia ameaçada, o [presidente eleito dos EUA] George Bush dizendo que pode trocar a dívida externa pela Amazônia. Isso tudo a gente não pode ouvir e ficar calado. Vá pra puta que o pariu o Bush lá com o grupo dele, nós somos uma nação independente.

O senhor pensa na morte? Eu evito pensar, mas sou pessimista quando penso no ser humano. Nascer é uma loteria, é genético, sai o inteligente, o idiota, o bom, o ruim. Isso desculpa muito as pessoas. Acho que às vezes a gente tá ligado ao passado que estudamos, então eu sou mais indulgente com as pessoas. Procuro escutá-las, entender como são. Tenho uma maneira de viver tranqüila, não gosto de fazer inimigos, não critico ninguém.

“A arquitetura para mim é um caminho. Não mudo minha direção, acredito na in­tuição e não quero saber o que pensam da minha arquitetura”
Oscar Niemeyer

Só faço o que gosto, e acho que cada um deve fazer o que quer, é um modo de vida.

O que o senhor acha que vem depois da morte? Nada. Em que vou acreditar? Meu avô era ministro do Supremo Tribunal Federal, e a única regalia que ele tinha era missa em casa. Eu devia ter uns 8 anos e assistia às missas. Mas, quando saía de casa, via que o mundo era perverso. Passei a vida inteira tentando ficar ao lado dos mais pobres.

Então seu humanismo tem muito de cristão? Não, antigamente eu até gostava de ler o [pensador católico] Teilhard de Chardin, mas nunca acreditei. Tudo é frágil, de um dia para o outro tudo desmorona.

Quem mais influiu no seu pensamento? Gosto da posição filosófica do [filósofo francês Jean-Paul] Sartre, que dizia que a vida é um fracasso, mas ele continuava participando, sabia o que acontecia no mundo, na política. Sartre dizia pra gente que gostava de ter dinheiro no bolso para dar esmola. É uma maneira mais generosa de viver a vida, mas tem que reagir quando é preciso.

 O senhor é otimista? Não muito otimista, não. Otimista só no sentido de que pode melhorar sim, mas o homem continua fodido. Nasce e morre e só.

Mas não foi sempre assim na história do mundo? Pode ser. O homem sempre reclamou da fragilidade das coisas.

Com sua experiência de sete décadas de casamento, o que o senhor acha das novas formas de vida a dois, do casamento, da família? Está tudo mudando. Muda tanto que eu nem quero falar: relação de homem com homem, mulher com mulher, isso não é do meu tempo, no meu tempo era diferente.

Como as curvas da mulher influenciaram sua arquitetura? O sexo tem importância na sua arquitetura? Já disseram que eu colocava as montanhas do Rio na arquitetura. Nem montanha, nem mulher. Na época em que eu pensava muito em mulher, era uma merda. Prefiro a idéia do [pensador francês] André Malraux, que costumava dizer que guardava no íntimo tudo o que viu e amou na vida.

Existe alguma mulher que te impressiona? [Risos...]

É que daqui da janela de seu escritório dá para ver as garotas na praia... Não vou entrar nessa de fazer papel de garoto. Eu dei uma entrevista para os meus amigos da revista “Bundas”, e eles ficaram com graça, e tal... Pode brincar mas tem coisas que devem ser tratadas com critério. O importante na velhice é o sujeito não se ridicularizar.

O senhor acha que as mulheres do Rio melhoraram com o passar do tempo? Aos 93 anos, só digo que de mulher a gente gosta até morrer...

Os jovens estão hoje muito preocupados com eles mesmos, com a casca, a aparência e o prazer... Me lembro que o [poeta] Carlos Drummond de Andrade dizia que os jovens pensavam pouco. No Rio, por exemplo, a natureza convida o sujeito a levar uma vida passiva, voltada para prazeres. Não é que se despreze a vida mansa devido a uma posição filosófica, mas é preciso perceber que existe uma miséria muito grande no país, e que miséria gera violência. O país já foi muito melhor, as cidades já foram muito melhores.

O que acontece com as obras arquitetônicas no Brasil, cada vez mais escondidas por outras cons­truções, além de cercadas, protegidas? No Brasil, de modo geral, o sujeito não compreende que o espaço em torno das construções faz parte do conjunto. A relação entre espaço livre e arquitetura é ignorado por muitos arquitetos. Aqui em Niterói tinha um prédio antigo que eu admirava. Era a casa mais bonita daqui, em estilo colonial. Ficava num platozinho, tinha um bom espaço aberto em volta. Outro dia passei por lá e estava uma merda. Conservaram o prédio, mas deixaram que as cons­truções se aproximassem. Em Brasília, estão construindo ao lado do Palácio da Alvorada, e depois reclamam... Contrariei muita gente ao construir Brasília. Essa conversa de arquitetura tá ficando uma merda... Na antiga Atenas, o Partenon tinha muito mais imponência que teria agora.

São Paulo é uma das cidades mais feias do Brasil, e agora será administrada por uma mulher de esquerda. Existe saída para melhorar a qualidade de vida e a arquitetura de São Paulo? O que aconteceu em São Paulo foi o mesmo que aconteceu no Rio, em Belo Horizonte, Brasília: é gente demais. O pessoal sai de um lugar mais pobre para trabalhar, ter uma vida melhor. A cidade cresceu demais com prédios muito altos e muita gente. No Rio, por exemplo, você podia andar pelas ruas do centro, ver as mulheres. Era uma cidade aprazível.  Tinha lugares para sentar, bares para bater papo com os amigos, bons restaurantes. Agora o centro é uma zona de desespero, e a Barra da Tijuca parece Miami... é uma merda.

E a boemia, mudou muito? Tenho pena e saudades. Mudou muito. Íamos para os bailes, para os cabarés, me lembro que à primeira vez que fui a um cabaré o sujeito não nos deixou entrar porque um amigo meu estava sem a identidade. Agora entra quem quer.

A revista TRIP está planejando a construção de praças esportivas para adolescentes na periferia de São Paulo... Isso é bom. É uma maneira de chamar a juventude para o convívio e a dignidade. É preciso fazer alguma coisa para mudar o país. Incentivar a convivência e o esporte é uma forma de a arquitetura ajudar no ensino e na política, uma forma de combater a violência.

O que o senhor diria ao jovem arquiteto que está entrando no mercado de trabalho? Eu sempre digo que não basta sair da escola como um bom profissional. Tem que sair pensando na vida, nos problemas do país e do mundo. Tem que se interessar e se manifestar. A vida é mais importante que a profissão. E o jovem tem que arriscar. Eu vejo que muitos jovens estão preocupados com a vida brasileira, sabem que não é só andar na praia, se divertir. Mas isso se perde por falta de organização. A juventude tem que ter esperança e participar politicamente. Quando a vida se degrada e a esperança sai do coração dos homens, morre a revolução.

Como o senhor vê hoje a revolução? Vejo uma revolução que não se faz de uma noite para a outra. A juventude precisa criar dentro de si a vontade de protestar contra tudo o que é ruim, como nós fazíamos. Venderam o Brasil e ninguém protestou. Antes a gente saía pra rua, brigava pelo petróleo que é nosso... eu sei que a juventude sente os problemas e quer se definir, quer protestar, mas não tem se organizado. Acho que não existe só este lado esportivo, cultural. É preciso estar com o pé na terra, perceber que o povo é infeliz, ver que a briga tá aí, ver que tem alguns movimentos que merecem apoio, como o dos sem-terra. Perceber que eles estão por aí, pelas estradas, num país que é um continente.

Então o senhor vê no MST, na reforma agrária, uma saída para muitos dos problemas do país?O problema do país é a vida das pessoas, o trabalho e a soberania nacional. Arquitetura vem depois. O MST invadiu um ­shopping center aqui no Rio, mas não roubou nada. Era só para chamar a atenção. O João Pedro Stédile [principal liderança do MST] me disse que eles vão tentar invadir as multinacionais, tomar conta dos prédios. Só pra chamar atenção. A solução está na eleição para presidente, e eu gostaria que ganhasse o Lula, o Brizola ou o Stédile.

Por que o senhor acha que a juventude não se mobiliza politicamente? Preguiça? Não é que a juventude esteja alheia, nem que seja preguiçosa. O que falta é informação sobre a realidade. Não adianta pensar só na profissão, no futuro profissional. Arquitetura, por exemplo, é passatempo. A vida é mais importante. 

Ainda é possível criar um ambiente para a revolução? Não sei, é lógico que não vai ser hoje nem amanhã, mas é preciso mudar. Acho que, quando vende­ram o Brasil, os militares não deviam estar contentes, afinal, a profissão deles é guardar a nação.

Dizem que a internet é um meio para se fazer a revolução. O senhor acredita nisso? Não se pode duvidar de nada. Na semana passada estiveram aqui uns cientistas para conversar sobre o cosmos, a importância das novas tecnologias sobre a inteligência do homem. Eu gosto de estar a par de tudo. Acho que os avanços tecnológicos são parte da revolução. Você não pode duvidar de nada. Parece fantástico, mas tudo é possível.

De onde o senhor tira disposição para trabalhar até nos finais de semana? Na minha idade tem que se ocupar. Não se pode ficar parado num canto. Tem que chamar os amigos para conversar, discutir, fingir que é moço, vivendo e participando.

Como é o seu processo de criação? Às vezes a coisa vem naturalmente. Pode até demorar. O importante é resguardar a intuição. O Museu de Niterói, por exemplo. Enquanto estavam discutindo o terreno – um braço de terra pendurado no mar –, pensei num apoio central para a obra. Do apoio surgiu a arquitetura. Outra vez estava na Argélia e tinha que fazer uma mesquita. Então fiquei pensando e, quando já estava para dormir, projetei a obra quase sem nó.

Já teve algum projeto que o senhor não conseguiu fazer ou resolver? Não, às vezes é preciso rever a estrutura do projeto, ou temos que tirar alguma coisa, mas tudo se resolve pelo estudo.

O senhor gosta de desenhar? O desenho é a base de tudo. O sujeito deve saber desembaraçar a mão. Antigamente, o profissional era ligado mais às artes, hoje é mais ligado ao desenvolvimento da técnica, da ciência.

Uma vez o senhor disse que o arquiteto tem que saber escrever. Como é a relação do arquiteto com o texto? Meus projetos são mais aceitos e compreendidos pelo texto do que pelo desenho, porque ninguém entende as curvas, os detalhes. Até a aprovação muitas vezes depende mais do texto. No Palácio do Itamaraty, o calculista Joaquim Cardozo se esmerou, e quem vai lá não percebe. O lugar tem um vão de 40 metros por 50 centíme­tros. Mas, quando o filho do Pier Luigi Nervi foi lá, um italiano que era o papa do concreto armado, ele disse: “Essa laje é mais difícil de fazer do que a ponte que estamos construindo”. São segredos da arquitetura. Por exemplo, no prédio do Itamaraty, a laje de cobertura é fina nas bordas porque no meio do prédio ela tem 2 metros de altura.

O escritor português José Saramago está lançando um livro que se chama “A Caverna” e se passa num shopping center... O Saramago esteve aqui conversando comigo. Mora numa ilha e tem uma casa fantástica à beira-mar, me mandou umas fotos. Ele é um sujeito fantástico, uma pessoa direta. É o homem mais feliz do mundo.

O que o senhor acha de design? Acho que está tudo certo, tem que desenvolver, criar, mas tudo depende do gosto da pessoa, do bom gosto. Uma vez fiz uma casa para um senador e, quando ficou pronta, ele me convidou para ir lá. A mulher dele nos recebeu e logo disse que a casa mudou a vida do casal. Disse que gostou tanto que ela mesma fez a decoração. Aí eu pensei comigo: “Tô fodido”. E realmente estava. Eu quis ser gentil e fiquei lá, conversa e tal. Mas gosto é complicado, pois é relacionado não só à arquitetura, mas à arte. Cada um forma uma noção estética muito própria. Ninguém é dono da verdade.

O senhor já fotografou? Já, mas hoje só fotografo arquitetura. Mas tem esse fotógrafo, o Sebastião Salgado, que é fantástico. Ele é inteligente, enxerga os pobres, o país e o mundo.

O senhor tem computador? Nunca mexi num computador. A arquitetura para mim é muito pessoal, fico no meu canto fazendo meus desenhos.

O computador melhorou ou piorou a arquitetura? Acho que projeto deve ser feito a mão, no papel. Não admito fazer um projeto por computador.

E a internet? Não sei, mas tenho um bisneto que fica lá bastante tempo e já sabe de tudo.

O senhor já entrou em depressão? Como o senhor vê a psicanálise? Deve ser útil, mas nunca precisei. Por exemplo, nunca leio nada do que escrevem a meu respeito. Existem mais de trinta livros publicados sobre minha arquitetura e nunca li nenhum. Gosto de preservar minha integridade.

Na sua juventude, o uso de drogas não era estigmatizado como agora... Não era, né? Acho que as drogas deveriam ser industrializadas.

Deveriam ser liberadas? Acho que sim. A vida é sua e você faz dela o que quiser. Na ilegalidade, a droga virou um negócio fantástico. São vários cartéis, com apoio de bancos.

O senhor acha que a droga ou outro alterador de estado pode ajudar no processo de criação? Acho que não, mas cada um tem a sua maneira própria de sentir as coisas. Tem drogas em todo lugar e em todas as situações.

Qual foi sua droga pessoal, teve alguma droga de que o senhor gostou? Nenhuma. Minha droga é mulher.

Créditos

Imagem principal: Christian Gaul

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