Retiraram parte do meu fígado junto com um tumor cancerígeno. Tenho que ter muito autocontrole para não magoar aqueles que me amam

Desde que tive a consciência de que, se queremos fazer alguma coisa no mundo, primeiro é preciso fazer dentro de nós, vivo uma vida que busca autocontrole e disciplina. Disciplina para mim é fácil. Seria um militar perfeito não fosse meu passado e minhas disposições interiores contrárias a qualquer mando. É fácil me autodisciplinar. Parei de fumar (cigarro e maconha) quando quis; parei totalmente com o álcool recentemente, há muito não bebia senão socialmente.

Agora autocontrole é um drama pessoal. É extremamente difícil não dizer o que há em mim para dizer (por isso escrevo). Escrevo quase sempre na primeira pessoa porque é mais verdadeiro. Não consigo ser hipócrita nem escrevendo nem para ganhar dinheiro. A mim, se autocontrole dá resultados a longo prazo, a curto e médio prazo provoca a rotina e esta me conduz ao tédio e à angústia. Nosso organismo já é controlado por relógios biológicos internos que funcionam por condicionamentos; mais controle ainda por quê? Do que somos feitos? De controles?

Acho mesmo que a autorrestrição pode ser uma forma de autoproteção e eu, sinceramente, não careço disso. Estou pronto para enfrentar tudo o que venha e vencer todos os medos. O medo da morte, inclusive. Vivi em extremos, sempre em risco de morte. Agora mesmo estou vivendo uma das minhas maiores provações. Acabo de passar por uma cirurgia complexa. Retiraram parte de meu fígado, junto com um tumor cancerígeno que ali crescia, dominante. Ainda estou com os pontos todos e só vou retirá-los daqui a dez dias. Passo por febres, dores de cabeça, dores nos cortes e incômodos aos montes. Para começar, estou de semirrepouso, só posso dar umas voltinhas rápidas, há restrições alimentares, não posso dormir do lado direito que dói, até sexo é complicado de fazer. Estou neurótico, intratável e de saco cheio. As pessoas ficam com cuidados excessivos comigo e isso me aborrece, não gosto de depender de ninguém. Fico mais quieto, e aí entra o autocontrole, para não magoar aqueles que me amam. 

RABO ENTRE AS PERNAS 
Na maior parte das vezes, controlar é um verbo mentiroso. Não nos controlamos, apenas nos restringimos. A civilização ocidental não contempla essa variedade comportamental. Somos ensinados a descontrolar: gastar, viver acima de nossos padrões, consumir como verdadeiros idiotas. Até poucos dias atrás eu ia a um shopping center e, se chegasse em casa sem haver comprado nada, me sentia frustrado. Hoje já coloquei um freio nisso (não é controle, é freio mesmo) e, por mais que me frustre, não compro. Tomo um café e fico a analisar a fascinação das pessoas comprando, como antídoto.

Hoje dei uma passada na academia que frequento, o pessoal veio saber como eu estava. Expliquei, mostrei os cortes. Mas tive que sair andando, não posso me demorar, fico com receio da febre e da dor de cabeça. Se persistir, temo que vão me cortar novamente para ver o que está acontecendo. Aí entra a disciplina: eu que era de ficar no mínimo duas horas malhando e pegava os pesos mais pesados, tive que sair com o rabo entre as pernas, com a molecada me olhando melancolicamente...

Faz 12 anos que fui liberto das masmorras que me trancafiaram quase a vida toda (31 anos e 10 meses). Nunca mais passei por uma delegacia. Tenho vivido uma vida que faço questão de que seja honesta e decente. Quero ser um exemplo para meus filhos e ter moral para falar com qualquer pessoa em pé de igualdade. Careço de respeito. Isso não é autocontrole; é autorrespeito e consciência de que não estou só no mundo.

Créditos

Imagem principal: Talita Hoffman

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