David Gelb, o diretor das séries Chef’s Table e Street Food
Se você passa horas maratonando programas de gastronomia na Netflix, é porque o diretor americano fez delas um fenômeno
Cinema é perspectiva e a de David Gelb sobre o sushi se transformou em um dos documentários sobre gastronomia mais populares do mundo. Lançado em 2011, Jiro Dreams of Sushi parte da história de um pequeno e prestigiado restaurante em uma estação de metrô em Tóquio para despertar uma profunda reflexão sobre a cultura japonesa através da história de uma família dedicada à tradição do sushi. “O cinema tem ferramentas que possibilitam a magia de conseguir mostrar novos pontos de vista sobre algo que sempre esteve ali”, diz à Trip o americano de 36 anos.
Captar com sensibilidade, estilo e técnica os dramas humanos que se misturam ao ato de cozinhar é uma das principais características do trabalho de David. E, desde muito cedo, o cinema, a gastronomia e a cultura japonesa ocupam espaços centrais na vida do diretor.
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“Meu pai produzia documentários de música e minha mãe é pesquisadora gastronômica. Trabalhava com livros de receitas, como as do chef argentino Francis Mallmann.” Por conta das viagens de seu pai, aos 4 anos David já tinha visitado mais de uma vez o Japão e cultivava alguma familiaridade com o gosto levemente avinagrado do arroz dos sushis. “Tenho uma vaga memória de quando comi meu primeiro sushi, em Tóquio. Eu me lembro mais dos programas de televisão, dos desenhos. Adorava a cultura infantil japonesa.”
David passou a adolescência em Nova York, onde nasceu, assistindo a filmes japoneses e, na escola, escolheu aprender japonês. Aos 16, passou um verão vivendo no Japão com uma família local e percebeu como era intensa a dedicação dos chefs especializados em sushi. De volta aos EUA, se mudou para Los Angeles, onde começou a estudar cinema. Desistiu dos planos de ser ator e passou a articular a carreira como diretor. “Pensava em fazer algo inspirado na série Planet Earth, da BBC, mas focado em sushi, minha comida favorita, mostrando vários pontos de vista.”
Mas, conforme as pesquisas para o projeto avançaram, o roteiro foi se transformando. “Quando conheci o Jiro, entendi que o filme deveria ser sobre ele. A história daquela família revela muito sobre a gastronomia japonesa, mas de uma maneira emocionante.” Jiro Ono é um dos maiores chefs de sushi do planeta. Seu perfeccionismo — que o leva a massagear por 45 minutos um pedaço de polvo para que ele atinja a textura ideal — e seu respeito às tradições o transformaram em um patrimônio do país.
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Seu restaurante, o Sukiyabashi Jiro, foi o primeiro especializado em sushi a receber a avaliação máxima (três estrelas) no Guia Michelin. Mas em 2019 foi excluído da lista por um motivo surpreendente: é impossível reservar um lugar em seu pequeno balcão. A altíssima procura pelos (caríssimos) sushis de Jiro – ampliada de maneira radical pelo documentário de David – tornou a visita ao restaurante um privilégio para poucos e influentes clientes. Foi lá que Barack Obama se reuniu com o primeiro-ministro japonês Shinzo Abe em sua visita a Tóquio, em 2014. “Me sinto mal por isso, porque sei que Jiro e seu filho, Yoshikazu Ono, só querem viver uma vida simples, fazendo sushi e, de repente, se transformaram em um fenômeno internacional. É triste que o restaurante seja tão difícil de ser acessado, mas é lindo ver que eles seguem focados na arte de fazer sushi”, conta.
“Uma das coisas mais interessantes do Japão é a cultura de especialização. Lá, você é celebrado quando foca em uma única função e tenta ser perfeito nela. Acho isso fascinante. Jiro tem 94 anos e faz a mesma coisa todos os dias, sempre tentando evoluir. Isso mexeu comigo, é uma filosofia que vale ser compartilhada.”
No risco
Apesar do sucesso do documentário, não foi fácil para David tirar do papel seu projeto seguinte, a série Chef's Table (Netflix). “Não existia um programa de comida sem uma celebridade como apresentador. Sou grande fã do Anthony Bourdain, mas é um tipo diferente de conteúdo. Foi um risco apostar em uma linguagem que não era a de reality show.”
Para o diretor, chefs de cozinha são contadores de história. Carregam em sua comida suas percepções do mundo, seus sucessos e seus fracassos. E David aposta nesta receita em Chef’s Table, em que mostrou a trajetória do italiano Massimo Bottura à eslovena Ana Ros, dentro e fora da cozinha. Nos episódios, descobrimos como as viagens de ácido influenciaram a careira de Alex Atala, que a mexicana Cristina Martinez atravessou a fronteira com os Estados Unidos pelo deserto, ilegalmente, e que o americano Grant Achatz teve um câncer na língua.
Essa perspectiva sobre a gastronomia, aliada à qualidade cinematográfica de seu trabalho, transformou o formato das produções assinadas por David em uma tendência no mercado audiovisual. Se quando foi lançada Chef's Table surpreendia por se afastar do formato de reality show, hoje não faltam séries semelhantes, como Na rota do taco, que mergulha na história da culinária mexicana, e Rotten, que explora a cadeia de produção dos alimentos com uma estética cinematográfica, ambas disponíveis na Netflix. Em seis temporadas, Chef’s Table recebeu sete indicações ao Emmy, e rendeu um filhote. Durante suas andanças com os chefs pela Ásia, David acabou conhecendo as barracas de comida favoritas deles. E assim nasceu Street Food, sua segunda série para a Netflix, que mostra a trajetória de vendedores de comida de rua.
“O Chef's Table proporciona a muita gente que jamais iria àqueles restaurantes conheçer a comida que é feita ali. Mas a verdade é que esses endereços são caros e pouco acessíveis. Por isso estou tão empolgado com a Street Food. É mais democrático e nela também falamos muito sobre as cidades.” A primeira temporada foi rodada na Ásia, passou por cidades como Deli (Índia), Seul (Coreia do Sul) e as próximas vão explorar outras partes do globo. David também está terminando de gravar seu primeiro documentário sobre um chef depois do Jiro. Será sobre o austríaco Wolfgang Puck. “Ele é o arquiteto dos jantares-experiências, trouxe o glamour de Hollywood para a gastronomia. Sua história não cabia em um episódio e por isso virou um filme.”
Mas, nos últimos meses, a vida de David mudou bastante: em julho, nasceu seu primeiro filho, e ele trocou as viagens por mais tempo em sua casa, e as receitas assinadas por grandes chefs pelas suas próprias. “Faço de tudo, menos sushi!”
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David também está revisitando suas memórias da infância, enquanto produz Marvel’s 616, série documental para a Disney sobre os heróis da Marvel e seu impacto pelo mundo. “Nos anos 70, existia um programa de TV japonês do Homem-Aranha, diferente da versão americana. Ele me lembra os desenhos japoneses que curti, ainda criança, nas primeiras visitas ao país. Estar no set com essas figuras que sempre amei é um sonho que vira realidade. Quando você filma algo pelo qual tem paixão, sempre dá certo.”
Créditos
Imagem principal: Arquivo pessoal