João Wainer fala sobre o documentário A Ponte, que revela outro lado de São Paulo
“O mundo é diferente da ponte pra cá”, profetizou o rapper Mano Brown. Pode parecer exagero, mas em uma megalópole como São Paulo, que reúne diversos mundos, a distância entre eles pode ser apenas uma ponte.
“É a ignorância sobre o outro lado de nós mesmos”, diz, em letras garrafais, a sinopse do filme, que, assim como o trabalho transformador e coletivo da educadora Dagmar Garroux (a Tia Dag) e sua ONG Casa do Zezinho, também reúne outros apaixonados por transformação, como a produtora Sindicato Paralelo, o Instituto Rukha, Roberto de Oliveira, João Wainer, Marcelo Loureiro, Paulo Lima, e outros cidadãos preocupados com o que acontece da ponte pra lá.
Depois de três anos de produção, esse grupo de pessoas tem o orgulho de apresentar imagens de um mundo, que graças ao trabalho de Tia Dag, está servindo de exemplo para os habitantes do outro lado da ponte, os que insistem em ficar trancafiados em seus mundos blindados.
João Wainer, diretor de fotografia do filme, conversou com a Trip sobre o documentário A Ponte.
TRIP Qual a principal dificuldade durante a produção do documentário?
João Wainer A grande dificuldade desse projeto era um desafio que se transformou em dificuldade, que é o lance de termos que fazer um documentário sobre uma ONG sem ficar com cara de institucional, meio chato. Por isso fizemos o filme com uma pegada de documentário, que chamasse a atenção das pessoas. Ele mostra o trabalho da Tia Dag como uma solução, só que a gente também discute o problema em si, o por quê das estarem desse jeito, com o Mano Brown, com o Ferréz... O filme basicamente discute o problema e mostra o trabaho que a Tia Dag faz na zona sul como uma solução.
O documentário é encerrado com a frase “Construímos muros de mais e pontes de menos”, porém, a ponte do rio Pinheiros acaba sendo mais eficiente do que o Muro de Berlim, por exemplo. Essa pontuação final foi proposital? Algo para refletir?
Sem dúvida. As pessoas acabam se isolando cada vez mais, e, apesar de acharem que estão se protegendo, acabam gerando mais violência, acabam gerando um efeito contrário do desejado. Quanto mais as pessoas se cercam, quanto mais elas constróem muros, mais ficam expostas. Na minha opinião, acredito que não tem algo mais seguro do que andar de vidro aberto em São Paulo, nem nada mais seguro do que uma casa sem muro, entendeu? Porque se você está andando como vidro aberto, o cara não vai te roubar, pois se você tivesse alguma coisa para ser roubada, não estaria com o vidro assim.
Você transita com naturalidade entre os dois mundos, o dos ricos e dos pobres... Notou alguma semelhança entre os dois mundos?
Deixa eu pensar... Tem várias semelhanças, mas as diferenças são bem maiores, a parte rica tem muito mais acesso a várias coisas do que a pobre.
O medo de ambos os lados pode ser uma semelhança?
Tem razão. São medos diferentes, mas são medos. Até fiz uma matéria para a Trip uns tempos atrás na qual queria mostrar que pobre também tem medo de ser roubado. As pessoas morrem de medo de ser assaltadas na favela. A casa do cara estava cheia de grade e perguntei: “Você tem medo de ser assaltado?” “Tenho.” “Alguém já foi assaltado na sua rua?” “Não.” Então, por que tanta grade, porra?! O medo virou uma coisa cultural, é a cultura do medo.
Em certo momento, o Mano Brown é abordado por um motoboy que pede a ele uma opinião sobre o trabalho do MV Bill. Nesse momento, Brown fala que, por mais que não pareça, um motoboy, nordestino, tem consciência de que a reviravolta está para acontecer. Você acha que é isso que falta para a nossa elite? Consciência de que a mudança está acontecendo e eles não percebem?
Eu acho que às vezes tanto nossa elite quanto nossa favela não enxergam. Mas acredito que isso está mudando, cada vez mais os dois lados estão se conscientizando, e isso é bom.
Em uma megalópole como São Paulo, o que mais te fascina?
Eu acho São Paulo uma cidade incrível. Não trocaria por nenhuma cidade do mundo, acho que aqui existe um troço incrível que é o fato da cidade estar crescendo muito e ainda ter muita coisa a ser feita. Você vai para outros países e a impressão que dá é que tudo já foi feito, que você seria apenas mais um fazendo o que já foi feito. O grande barato aqui é a mistura, ter um pouco de tudo, de cada país do mundo, um pouco de cada Estado, acho que isso é o futuro da humanidade, essa mistura. Menos segregação e mais mistura, o segredo é esse.
A Regina Casé comentou isso no Antídoto do ano passado no Itaú Cultural, que “o grande barato é todo mundo misturado”.
A diferença é que, quando o jamaicano vai para a Inglaterra, ele continua sendo jamaicano. Ele vai pro gueto dele, pode até circular um pouquinho, mas é sempre jamaicano. Aqui no Brasil, o jamaicano fica dois meses e já é brasileiro. As pessoas chegam e se misturam, enquanto na Europa não se misturam tanto. Por mais que tenha gente do mundo inteiro na cidade, elas ficam meio que cada uma no seu canto. Talvez isso não aconteça aqui pela nossa colonização, né? Os portuguesses chegaram comendo todo mundo. Como diz o Brown, “trocando a mulher do índio por espelhinho”.
Você voltou recentemente da Nigéria, um lugar cercado por miséria e precariedade, porém, com predomínio de negros. Aqui no Brasil, infelizmente, ainda existe esse preconceito contra o preto, pardo e pobre. Durante sua temporada por lá, você sentiu preconceito por ser branco?
A gente não sentia tanto o lance do preconceito, mas eles viam um branco e pulavam em cima para tentar tirar um dinheiro. Era um troço muito agressivo. Para você ter idéia, nós ficamos dez dias em Lagos e só vimos dois brancos na rua, que eram dois negros albinos, que não contam como brancos.
É possível traçar um paralelo entre a situação política e social de lá com a da população que mora “da ponte pra cá”?
Cara, a gente está muito mais avançado do que eles em termos de infra-estrutura. Um exemplo: em uma favela no Capão existem muito mais coisas do que num bairro de classe média na Nigéria. Eles estão bem mais atrasados do que a gente, estão em outro estágio. Mas de qualquer forma é legal de ver, de sentir as semelhanças entre África e Brasil. Você vai para a África e começa a entender por que a gente é assim. Tem muita coisa parecida e no Brasil a gente nem sabe por que é assim. Indo pra lá que você começa a sacar...
Um exemplo?
Eu via muito o jeito que eles conversam, gesticulam muito, falam alto, um jeito de falar meio cantado. Muito parecido com o que você vê aqui. Quando você vai para um bairro de periferia e vê o pessoal conversando, você sente que tem a mesma cadência, sem falar o lance de comida, de costume, que é bem curioso. Na religião tem uma grande semelhança, aquela coisa de misturar tudo quanto é religião, ter uma, duas religiões, o cara apelar pro santo, pro orixá, é algo superparecido com aqui.
Outra questão abordada durante o filme foi o fato da extinção das Escolas Vocacionais durante o período da Ditadura. Porém, ela já acabou há duas décadas, e esse modelo ainda não foi retomado pelo governo, mas sim pelas próprias comunidades carentes. Existe aí uma omissão proposital da elite? Um certo medo de dividir o pedaço do bolo?
O desserviço que a Ditadura Militar prestou para a educação no Brasil até agora não foi sanado. Acho que a escola pública está no estado que está hoje, sem dúvida nenhuma, por culpa da Ditadura, e pelo que fizeram com o modelo educacional no Brasil. Você vê que, antes da Ditadura, o pessoal que estudou em escola pública nas décadas de 40, 50 tem o maior orgulho e dizem que era melhor que o ensino particular. É um modelo de ensino que foi implantado para fazer a criança pensar menos, ser algo mais técnico...
Trocar geografia por OSPB [Organização Social e Política Brasileira], por exemplo?
[Risos] Eu cheguei a estudar isso na escola. É um modelo criado nos Estados Unidos, que tem o intuito subjetivo de deixar a população menos pensante, e isso é algo absolutamente nocivo para a educação. Até agora o Brasil está se recuperando desse golpe. Acho que a Escola Vocacional foi extinta por isso, por fazer os alunos pensarem, por estimular a participação do lado de fora e levar a democracia para dentro da sala de aula, e isso era absolutamente perigoso para o regime militar. Agora, porque nunca mais voltou eu não faço a menor idéia. Precisa perguntar para os nossos ministros da Educação, pois era algo que funcionava.
Mais João Wainer aqui: https://revistatrip.uol.com.br/blogs/trancarua