Conexão Brasil-Polônia

por Henrique Goldman
Trip #236

Foi de Varsóvia que meus avós saíram para uma longa viagem até uma improvável Itajubá

 

Olho através da janela do Café Bristol e percebo que eu poderia ser aquele homem vendendo arenques numa carrocinha em Varsóvia. Foi de lá que meus avós saíram para uma longa viagem até uma improvável Itajubá

A epigenética é o estudo de aspectos da hereditariedade na evolução das espécies que não são causados por mudanças na sequência de DNA ou RNA. Segundo recentes experimentos feitos com ratos, causas externas (e não genéticas), como por exemplo um grande trauma causado por dor induzida (ou talvez prazer e muita alegria?), têm comprovadamente o poder de influenciar a hereditariedade. 

Não sou biólogo e peço licença para citar a epigenética, ainda que de forma pouco científica. Escrevo esta coluna sentado no Café Bristol, no centro de Varsóvia, um lugar que visito pela primeira vez, mas que, estranhamente, evoca profundas lembranças de um passado recôndito. A poucas quadras daqui, em 1926, meus avós Alberto e Helena pegaram um trem que os levaria até o porto de Danzig, no mar Báltico. Era o início de uma longa viagem que terminaria, depois de cruzar meio mundo, numa improvável Itajubá, Minas Gerais, onde meu avô, que chamava cozinha de “cuzinho”, abriu uma loja de móveis e um dia vendeu um sofá para o Dondinho, pai do Pelé. 

Estimo que por nove séculos meus antepassados tenham vivido aqui na Polônia, em Ostrowiec, na província de Kielce. Mas, a partir do fim da Primeira Guerra Mundial, a Polônia foi palco de inúmeros pogroms. Historicamente, o termo pogrom tem sido usado para denominar atos de violência em massa – espontânea ou premeditada – contra judeus, protestantes, eslavos e outras minorias étnicas da Europa. No caso dos pogroms de Kielce, os judeus foram perseguidos por, supostamente, apoiarem os bolcheviques – revolucionários comunistas russos – que queriam trazer a revolução para a Polônia.

SAL DA TERRA


Talvez a epigenética possa explicar por que esse país me faz sentir aquilo que muito provavelmente um brasileiro negro deve sentir ao visitar a África – ou o que o neto do refugiado palestino de Al Afoula sente quando sonha com sua pátria. Não se tem nenhuma memória direta de Benim ou da Transjordânia, mas o som dos tambores de Daomé – ou o berro das ovelhas – ecoam nos seus ossos. Porque ninguém é só homem sem ser também uma árvore. Depois de gerações, o sal da terra se perpetua no sangue-seiva. Não falo da consciência racional do passado, adquirida em livros de história ou documentários. Falo do inconsciente, do nó na garganta que precede a cultura. Olho através da janela do Café Bristol e percebo que eu poderia ser aquele homem numa carrocinha vendendo arenques e pepinos em conserva. 

Mas a vida não foi assim. Em Itajubá, meu pai teve o luxo de crescer como um autêntico caipira, de pés descalços e com lombrigas, lamentavelmente corintiano, sem poréns religiosos, ressalvas étnicas e massacres. Somos filhos da memória e do esquecimento. 

Nasci brasileiro e posso me deleitar de férias num glorioso verão polonês do século 21. O maior presente que o Brasil nos deu é essa abençoada amnésia histórica, em que a mesquinhez étnico-tribal dos velhos continentes não pode ter vez.

*Henrique Goldman, 53, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles

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