As peculiaridades daqueles que amamos

por Milly Lacombe

Tudo o que importa e tem significado é revelado em um almoço de sábado

Sábado passado, meu irmão e eu levamos minha mãe para almoçar em um restaurante sofisticado da cidade de São Paulo, e uma das coisas que a vida me ensinou precocemente é que levar minha mãe para fazer uma refeição fora de casa é, ao mesmo tempo, um ato de coragem e de fé. Mas meu irmão e eu estávamos descansados e dispostos a enfrentar o desafio.

O roteiro começa com a chegada do garçom à mesa oferecendo o menu. Telepaticamente eu já me manifesto pedindo mil desculpas ao funcionário do restaurante pelo que está por vir. A fim de tentar equilibrar energeticamente os minutos futuros, sou extrassimpática com ele. Logo de cara, causa estranhamento, porque ninguém sai falando do Corinthians com o garçom antes mesmo de pedir a água e o couvert, mas sei que em instantes esse meu comportamento quase abobado vai ser capaz de salvar o almoço.

Olhando para a lista de pratos, sem óculos, porque apesar dos 80 anos minha mãe se gaba de ter feito uma operação contra catarata que devolveu a ela a visão que tinha aos 20 anos, tem início o ritual de críticas ao menu em voz alta. Para os padrões de qualidade de minha mãe, não há no mundo restaurante capaz de montar o cardápio ideal e todos eles acabam se entregando a combinações sem sentido e bizarras, que ela faz questão de apontar, uma a uma, para um interlocutor imaginário, porque meu irmão e eu estamos com o rosto enfiado no menu – por sorte é um livro bastante grande.

Evidentemente não existe naquela relação de pratos nada que ela possa comer, dado que a dieta que minha mãe pratica há oito décadas é uma que envolve massas sem recheio (e com molho exclusivamente de tomate sem cebola ou pedaços aparentes de tomate), postas de peixe (que se restrinjam a filés de salmão ou de linguado), camarões grandes e sem a sujeira preta que fica armazenada em suas lombadas, omeletes (desde que os ovos usados sejam limpos da gosma branca que fica entre a gema e a clara), arroz, queijos e pães.

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Finalmente, depois do ritual da crítica em voz alta, ela encontra um risoto de açafrão, mas desgraçadamente ele é o acompanhamento do filé-mignon, e minha mãe não come carne. Meu irmão, muito educadamente, pergunta ao garçom se ele pode trazer esse específico risoto como prato principal e sem a carne. O garçom estranha, eu temo pelo pior, e o garçom, intrigado, quer saber se minha mãe vai mesmo ficar satisfeita apenas com um risoto de açafrão, dando a entender que há naquele pedido um desequilíbrio de nutrientes. Antes que minha mãe diga qualquer coisa que envolva o garçom não ter nada a ver com os nutrientes que ela escolhe ingerir, explico a ele que é assim há 80 anos e que, portanto, ele não precisa se preocupar, e imediatamente pergunto com quantas rodadas de antecedência ele acha que o Corinthians vai ser campeão este ano.

Os pratos chegam e comemos sem contratempos, mas é com horror que vejo minha mãe dizer que quer sobremesa, o que indica que o ritual de críticas terá segundo tempo. Estranhamente ela não reclama do menu e logo pede um sorvete de mascarpone com farofa de noccioline. 
Como minha mãe nasceu na Itália e foi alfabetizada em italiano, a língua estrangeira sai com naturalidade de sua boca, o que deixa o maître bastante impressionado. Tudo está indo muitíssimo bem e consigo relaxar um pouco, mas basta o sorvete chegar para eu entender que a tragédia estaria reservada ao terceiro ato.

Parece que o sorvete contém pouquíssimo mascarpone e que a farofa não tem a cor exata que uma farofa de noccioline deveria ter. Inconformada com aquele erro, minha mãe decide se levantar e ir ter com o maître à porta da cozinha. Invadida por um misto de choque, incredulidade e pavor, vejo minha mãe caminhando com o maître cozinha adentro. Olho para meu irmão, que ri e diz apenas “Deixa ela”, ao mesmo tempo que pede mais uma cerveja ao garçom para que, devidamente ébrios, possamos dar conta dos últimos minutos daquela tarde ensolarada.

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Não sei quanto tempo se passou, mas a cerveja já estava acabando quando vi minha mãe sair da cozinha escoltada pelo maître e por um garçom. Vai ser presa, pensei. Deve ter dito alguma coisa ofensiva a alguma minoria política e agora vai ser presa. Eu estava levantando para ir tirar ela dali quando a vejo abraçar o maître, tascar dois beijinhos em seu rosto, e voltar para a mesa sorridente. “Pronto. Expliquei as razões do meu descontentamento, e ainda dei detalhes de como preparar o molho de tomate ideal para que não sobrem vestígios de pedaços de tomate ou de cebola, e o gosto esteja perfeito”, contou muito soberanamente, sentando e ajeitando o guardanapo sobre as pernas.

Ao trazer a conta, o maître deixa à mesa um “sua mãe é ótima” antes de marchar dali. “Aonde vamos agora?”, ela quer saber. Meu irmão e eu ficamos mudos, mas ela já tinha a resposta. “Já sei! Tomar aquele limoncello que o Antonio deu a você quando voltou da Itália”, diz, olhando para mim. E então vamos a pé em direção à minha casa, onde brindamos com limoncello mais um dia em que minha mãe almoçou fora e não foi presa.

Aos 80 anos, é de se imaginar que ela esteja completando sua travessia por esse planeta maluco em que vivemos e, ao vê-la sair de casa com meu irmão, penso que no dia em que ela partir vai levar com ela esse modo inusitado de ser. Porque quando uma pessoa faz a última viagem, coloca na bagagem um jeito muito particular de rir, e de falar, e de reclamar, e de criticar o menu, e de amar – e o que hoje parece apenas irritante amanhã vira saudade. É muita coisa para alguém levar daqui de uma só vez, mas a verdade imperial é que tudo o que importa e tem significado é revelado na miudeza de um almoço de sábado, e fica guardado como história e memória.

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