Redes sociais são usadas para saciar a catarse coletiva. Elege-se uma nova vítima a ser atirada na arena digital. E, logo o interesse se esvai e nada se constrói
Não gosto de debates em que ninguém escuta ninguém. São perda de tempo. Quem participa deles, em geral, já chega com ideias preconcebidas. Quer convencer ou vexar os outros, mas não está disposto a ser convencido de nada. Infelizmente grande parte dos debates que acontecem hoje na internet brasileira são assim: frenesis que ardem como chamas. Cada participante tentando falar mais alto do que o outro. E mais rápido, para aproveitar enquanto o tema está quente. Quando o tema esfria, o interesse se esvai e tudo se dissipa. Nada é construído, nenhum consenso mínimo emerge e nem a memória do bate-boca se conserva. Tudo dá lugar à polêmica do dia seguinte, mais nova e atraente.
Já disse aqui e vale dizer de novo: as redes sociais são usadas com frequência como verdadeiros coliseus. Saciam a sede de catarse coletiva. A cada poucos dias elege-se um novo tema ou uma nova vítima para ser atirada na arena digital. Preste atenção: qual é a comoção de hoje na sua rede social favorita? Uma vez que um tema ou uma pessoa se vê jogada na berlinda virtual, a multidão investe sem piedade. Todos os julgamentos são imediatos e liminares: não há contraditório, não há defesa, não há provas, não há o outro lado. Só acusação e punição.
Mutatis mutandis, a situação lembra a epidemia de linchamentos que tomou conta de vários países desenvolvidos na primeira metade do século 20 com o avanço da urbanização. A imagem icônica do fenômeno é o filme de 1931 de Fritz Lang, M, o vampiro de Dusseldorf, em que a multidão – incluindo outros criminosos – busca fazer justiça com as próprias mãos.
Claro que essa catarse institucionalizada nas redes sociais interessa em termos de audiência. Como diz o bordão clássico do jornalismo marrom americano: If it bleeds, it leads (O que sangra, lidera). Os linchamentos virtuais são um espetáculo também. Capturam a atenção.
Uma solução para isso é o tempo. A passagem do tempo tem a feliz propriedade de acalmar os ânimos, abrir novamente os ouvidos para a escuta e dissipar o frenesi que não é construtivo. Por isso gosto tanto do trabalho da revista chamada Delayed Gratification. Ela faz jornalismo slow (devagar). Sua edição mais recente vai sempre tratar de temas que aconteceram meses atrás. Calma esta necessária para produzir uma melhor compreensão e um melhor debate sobre os fatos.
BEIJA-FLOR
Por exemplo, posso dizer só agora com serenidade que um dos eventos que me fizeram sentir vergonha neste ano de 2015 foi a vitória da Beija-Flor no Carnaval do Rio, financiada pelo regime ditatorial da Guiné Equatorial, notório por suas violações a direitos humanos. Trata-se de um caso de inacreditável falha sistêmica: os controles sociais falharam todos, um após o outro. A escola não podia ter sido financiada por um ditador. Mas foi. Tendo sido financiada desta forma, não podia ter desfilado. Desfilou. Tendo desfilado, não poderia ter ganhado. Ganhou. Tendo ganhado, o fato não poderia ter sido comemorado. Comemorou-se.
Mas quem vai pensar sobre isso agora, passados alguns meses? Onde está nossa revista Delayed Gratification, capaz de nos ajudar a digerir as vergonhas passadas? Estamos condenados às polêmicas do presente? Será o coliseu a única arena pública da qual podemos almejar ser protagonistas? Espero que não.
*RONALDO LEMOS, 39, é diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio de Janeiro (ITSrio.org) e apresenta o programa Navegador na Globonews. Seu Twitter é @lemos_ronaldo