por Pedro Carvalho
Trip #270

Christian Beserra, o brasileiro que representa os surfistas profissionais nas negociações com a WSL

“Eu já fiz muita reunião com presidentes de marketing de empresas como Coca-Cola ou Gilette, sempre tirei isso de letra, mas nessa aqui minhas pernas estão tremendo.” A frase provocou sorrisos no grupo de ouvintes – que tinha, na primeira fila, o eneacampeão mundial de surf Kelly Slater. Sentados nas fileiras de trás, estavam quase todos os outros atletas que competem no circuito mundial da categoria, a WSL. Era outubro do ano passado e os surfistas estavam reunidos em uma sala perto da praia de Hossegor, na França, durante a etapa do campeonato que é sediada ali. Quem falava era o brasileiro Christian Beserra, cuja tremedeira nas pernas tinha a ver com o fato de que, dessa vez, mais do que executivos poderosos, estava frente a frente com seus heróis – e não com o fato de que aquilo, de certa forma, era uma entrevista de emprego.

O caminho que levou Christian até aquela sala é inusitado, para dizer o mínimo. O “cearoca”, como ele se define (ele é do Rio de Janeiro, exceto pelo fato de que o parto foi no Ceará), tinha cursado geografia e começava a engatar uma carreira como planejador urbano quando, em 1990, veio o Plano Collor e o Brasil entrou em parafuso. Ele se mudou para Washington, a capital norte-americana, onde morava um meio-irmão. Foi trabalhar em uma padaria. Um dia, uma amiga que almoçava por ali falou sobre uma vaga de pesquisador no Banco Mundial, onde o pai dela trabalhava. Christian acabou contratado. Pouco depois, conheceu a primeira mulher. Quando ela foi chamada para dar aulas de inglês no Japão, ele pediu uma licença no banco e os dois cruzaram o mundo rumo ao Oriente. Lá ele começaria uma jornada por mais ou menos 70 países – e também se reconectaria com uma velha paixão: o surf.

O casal se instalou em uma cidadezinha costeira de 3 mil habitantes virada para a Coreia do Sul, chamada Matsuura. “Tinha uma praia com um beach break meio inconsistente, mas quando rolava um tufão dava altas ondas, virava uma míni Uluwatu, com três tubos na mesma onda”, ele conta. A mudança radical de ares parece ter feito Christian pegar o gosto pela exploração: ele passou a desbravar praias isoladas por cercas de arame farpado entre as duas Coreias, a viajar incontáveis ilhas da Indonésia. Chegou a ter um patrocinador e a participar de campeonatos – até ganhou a “competição de abertura” no mesmo dia e na mesma piscina de ondas japonesa (a Ocean Dome) em que Fábio Gouveia venceu uma etapa do mundial, em 1994.

Quando decidiram que era tempo de voltar para os Estados Unidos, três anos e meio após terem partido, Christian e a mulher tiveram uma ideia peculiar: encarar a viagem de volta somente por meio de transporte público. Foram 16 meses. A imensa lista de escalas incluiu Sri Lanka, Tibete, Paquistão, Bangladesh, Nepal – até, por fim, terminar em uma praia próxima a San Francisco, Califórnia, onde decidiram morar. Christian tinha 28 anos e, agora sim, sua vida – acredite – estava prestes a ficar agitada.

SURFANDO NA WEB
Aquela reunião em Hossegor não era a primeira que Christian fazia com a elite do surf. Em 2006, durante uma etapa do circuito mundial em Imbituba, no sul de Santa Catarina, ele falou à mesma plateia não para pleitear um emprego, mas como guru da tecnologia. O conteúdo foi, sem exagero, premonitório. Eram tempos, veja bem, em que o Facebook era uma novidade desconhecida e a rede social da moda era o Orkut. E Christian disparou: “Em breve, não será importante estar na capa de uma revista de surf, o que vai importar é ter 2 milhões de fãs na internet que interajam com você por um período relevante ao longo do dia. Vocês vão ganhar dinheiro expondo marcas nas próprias páginas que terão on-line” – e por aí vai.

LEIA MAIS: Como a vida de Jonas Letieri decolou depois de um acidente terrível

Nesse ponto, surge a dúvida: qual parte da história nós perdemos, para um geógrafo que desbravava ondas na Coreia do Sul se transformar em um expert no mundo digital? Bem, você talvez se lembre daqueles selinhos “powered by HP” que começaram a aparecer no canto de um monte de sites da internet, nos idos dos anos 90 – não? Por trás deles, veja só, estava o personagem destas páginas.

Após chegar à Califórnia, o primeiro emprego de Christian foi como garçom. Nas horas vagas, é claro, ele surfava. Até que, um dia, foi apanhado por uma enorme onda que se formou nos arredores de San Francisco e, de tão imensa, varreu todo o planeta: a internet. O Yahoo, uma das empresas locais que lideraria a revolução digital, estava contratando: queria pessoas que falassem várias línguas (não importava muito a formação) para ajudar nos planos de expansão global. Christian se tornou o primeiro brasileiro a trabalhar para a companhia – o que, na época, lhe rendeu uma reportagem de destaque no jornal Valor econômico. A função dele tinha a ver com as propagandas que apareciam nos sites construídos pelo Yahoo e sua carreira acompanhou a explosiva expansão da web. Logo, estava organizando as operações da empresa na América Latina, na Europa e na Ásia. O brasileiro ajudou a criar as primeiras campanhas de publicidade centralizadas em um único canal de distribuição – o selinho da HP, que era exibido 1,3 bilhão de vezes por dia e rendeu US$ 11 milhões ao Yahoo, era apenas um exemplo. Tornou-se chefe de vendas globais da companhia.

“Eu viajava o mundo todo, não parava em casa. Então, para me distrair e não pirar, voltei minha cabeça para algo novo: as ondas grandes. Comecei a surfar em Mavericks”, ele conta. O casamento não resistiu à rotina maluca. Ao mesmo tempo, Christian acabou se conectando com big riders como Alex Martins, Carlos Burle, Danilo Couto e Rodrigo Resende, que ficavam na casa dele quando iam surfar a temida onda californiana. “Não é que eu seja um big rider”, ele faz a ressalva. “Até 20 pés eu surfo bem... Quando passava disso, entrava na água morrendo de medo, ficava quatro horas com os caras e pegava uma onda só.”

Em 2007, quando Christian já se cansava da vida de executivo do Vale do Silício, o Yahoo fez um convite para uma vaga na Austrália. Ele foi – e mora lá até hoje. Acabou se transferindo mais tarde para a HP, onde trabalhou até o ano passado. E isso tudo, por fim, explica a sua escalada à posição, em Imbituba, de vidente de oportunidades digitais para surfistas. Voltemos, portanto, à sala de reunião em Hossegor.

LEIA MAIS: Leandro Dora, da juventude barra-pesada ao posto de principal treinador do surf mundial

Após ser sabatinado pelos surfistas na costa francesa, Christian foi escolhido para representá-los frente à WSL (World Surf League), a empresa proprietária do circuito mundial de surf [o texto original dizia que que Christian foi “eleito”. A palavra foi substituída para deixar claro que não houve uma votação, e sim uma indicação]. Para isso, em janeiro ele assumiu a direção da WPS (World Pro Surfers), o sindicato da categoria.

A WPS existe há mais ou menos duas décadas. Foi criada por um banqueiro inglês chamado Greville Mitchell, que se interessou pelo assunto por ter filhos surfistas. Enquanto assistia a um campeonato, ele reparou que os atletas descansavam sob um palanque sem qualquer estrutura de apoio, após uma bateria. Sensibilizado – Mitchell mantém uma série de ONGs mundo afora –, o banqueiro criou uma associação de classe para eles. Mas, até 2014, a atuação da WPS era discreta. As coisas mudaram após o bilionário Dirk Ziff (herdeiro da Ziff Davis Inc., uma editora americana) comprar o circuito mundial de surf da antiga ASP (Association of Surfing Professionals), criando a WSL. O que, na prática, significa que o campeonato deixou de pertencer a uma associação sem fins lucrativos e passou a ser controlado por uma empresa – com, obviamente, fins lucrativos. “Surgiu a necessidade de tornar os atletas profissionais, com direitos que eles nunca tiveram”, explica Christian. “Aí que eu entrei na jogada.”

Foi o banqueiro quem convidou o ex-executivo para comandar a associação. Morando na Austrália e com a vida financeira bem encaminhada (“Não sou rico, mas estou numa situação legalzinha”, ele define), Christian enxergou ali uma oportunidade de juntar um emprego com sua paixão – e aceitou o desafio. “Não foi pelo dinheiro, posso garantir. Além disso, deixei de ser um executivo para ter uma atuação muito mais política. Mas agora meus papos de trabalho são com meus heróis da vida”, conta.

Desde a sua chegada, a WPS focou sua atuação em três causas. A primeira é a criação de um fundo de garantia para os surfistas, para que eles tenham uma renda após pararem com os campeonatos. A ideia é que os atletas façam contribuições a esse fundo e que sua aplicação seja retroativa a 2014. As negociações estão avançadas.

Outra batalha é para que os surfistas que competem no circuito mundial passem a ser donos de 10% da WSL, e, consequentemente, de seus lucros anuais – vale dizer que no ano passado a WSL não teve lucro, o que era mesmo parte dos planos de Ziff, baseados em investir e melhorar a marca agora para que ela produza dividendos no futuro. Essa parcela dos lucros ajudaria a financiar a aposentadoria dos atletas – se não houver lucro, a empresa WSL ainda assim faria um aporte no fundo, em valor que está sendo negociado.

A terceira demanda prioritária de Christian é a criação de um “fundo de bem-estar” para os atletas. “Isso iria, por exemplo, prover um treinamento vocacional para eles. Um deles quer virar palestrante? Quer se tornar porta-voz de uma marca? Vamos ensinar como”, ele explica. “Esse fundo também iria garantir a saúde mental após a aposentadoria, uma questão comum a atletas de vários esportes.”

No mais, as reuniões periódicas da associação têm servido para afinar os ponteiros sobre questões coletivas dos atletas – manter ou não uma praia no calendário anual, surfar ou não em uma região com tubarões, ter mais tempo de férias ou de intervalo entre as etapas, definir o quanto eles podem expor os patrocínios nos campeonatos e coisas do tipo.

SEM PANCADARIA
Tudo parece justo e interessante, tratando-se de uma categoria que, nas praias onde sempre competiu, jamais contou com a sombra protetora das leis trabalhistas. Mas é preciso lembrar que do outro lado da mesa de negociações existe um bilionário ansioso por transformar o surf competitivo em um lucrativo negócio. Christian afirma que esse diálogo tem sido produtivo. “O Ziff é um cara gente boa, muito do bem, que quer o melhor para os surfistas. Como bom homem de negócios, ele sabe que o sucesso da empresa depende da satisfação dos funcionários”, ele diz.

De qualquer maneira, o que está em jogo é dinheiro – e em outros momentos da entrevista Christian cita “negociações ferrenhas” e termos do tipo. Sempre reforça, porém, que tudo funciona sob um approach “sem pancadaria”, que o ex-executivo considera ideal para a situação. “De saída, dei um xeque-mate no Ziff, dizendo a ele: ‘Não quero que a WPS seja um sindicato, mas uma parceira de vocês’”, conta. “Ele gostou muito. E, se concordar em compartilhar 10% da WSL com os surfistas, dará uma boa prova do compromisso com essa ideia.”

Equilibrado nessa onda meio traiçoeira, que flui entre um bilionário poderoso e a elite global do surf (“Kelly é um dos mais atuantes, fala o tempo todo nas reuniões”), Christian aposta que sua rica experiência – de vida, de surfista, de executivo – pode fazer a diferença. Na espuma que emerge da conversa, ele deixa a entender que a atividade profissional do surf, em breve, deve ver sua maré mudar significativamente. “Os próximos anos vão ser interessantes”, promete. Vinda de quem passou os anos anteriores rodando os cantos mais exóticos do planeta, a frase deve significar algo.

Créditos

Imagem principal: Andrew Goldie

fechar