Aproveitando a crise econômica e da democracia, forças obscuras ocupam espaços e impedem avanços de direitos individuais e a celebração da diversidade.
A filósofa americana Wendy Brown, em seu artigo American nightmare – neoliberalism, neoconservatism and de-democratization (Pesadelo americano – neoliberalismo, neoconservadorismo e desdemocratização), faz um diagnóstico do papel do neoliberalismo na crise da democracia. Escrito no auge do governo de George W. Bush, o estudo identifica em primeiro lugar uma inusitada aproximação de práticas ultraliberais na economia e no mercado com um crescente conservadorismo comportamental e de costumes ancorado no fundamentalismo religioso e no discurso de ódio contra a diversidade, o que a autora chama de neoconservadorismo.
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Essa espécie de Frankenstein ideológico, muito presente nos anos Bush, reaparece no pacto que governa interinamente o Brasil atual e cresce pelo mundo ameaçando a qualidade das democracias. Sempre é bom lembrar que as liberdades individuais e os direitos humanos e civis foram bandeiras originais do liberalismo clássico e que a esquerda histórica nunca se importou muito com esse tipo de abordagem, por incrível que pareça, quando os principais defensores desses direitos hoje em dia estão em partidos mais à esquerda.
Igualdade, universalidade, laicidade
O entendimento dos efeitos políticos e culturais do neoliberalismo passa também pelo processo de não restringir a observação apenas nas políticas econômicas e de mercado que desmontam o estado de bem-estar social, privatizam serviços, direcionam a economia e intensificam a desigualdade em todo lugar. A autora distingue o liberalismo clássico do neoliberalismo, considerando que parte do que torna o neoliberalismo “neo” é que o sistema representa o livre mercado, o livre comércio e a racionalidade empresarial como processo normativo, promulgado através do direito e da política, ou seja, não se trata de algo econômico e social simplesmente, que ocorre por força da natureza na lógica liberal clássica. Mais do que simplesmente facilitar a economia, o próprio Estado deve construir-se nos termos do mercado, bem como desenvolver políticas e até estabelecer uma cultura política que coloca os cidadãos, antes de mais nada, como agentes econômicos em todas as esferas da vida. Figurativamente, empresários substituírem advogados na classe governante das democracias liberais. Em outras palavras, as normas comerciais substituem os princípios jurídicos.
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Wendy Brown denomina de desdemocratização a desativação atual de fundamentos tradicionais do liberalismo clássico, como igualdade, universalidade, laicidade, autonomia política, liberdades civis, cidadania, regras ditadas pela lei e imprensa livre. Na prática, está se retirando do compromisso formal da democracia a ideia de igualdade. As classes menos favorecidas se juntam com a classe de imigrantes e não cidadãos, na percepção de serem um custo inevitável da sociedade de mercado, comprometendo, assim, a ideia de universalismo. O conceito de cidadania é reduzido e paulatinamente qualquer orientação para um bem comum perde força.
Aproveitando a crise econômica e a urgência de melhorias e a desdemocratização identificada por Brown, forças obscuras da sociedade ocupam espaços e impedem avanços de direitos individuais e a celebração da diversidade em sua plenitude.