por Juliana Cunha
Trip #236

As tentativas de domar, castrar, desarmar e padronizar a vulva, ícone do desejo masculino

Bettie Page, pin-up definitiva pelas lentes de John Razan, no The Big Book of Pussy, da Taschen

O clitóris é o único órgão humano cuja função reconhecida é apenas gerar prazer. Em O sexo da mulher, de 1967, o médico e escritor Gérard Zwang o descreve como “o inseparável educador da vagina, seu incitador ao prazer, seu vizinho de porta e melhor amigo”. Sua posição estrategicamente superficial torna difícil pensar que esteja ali somente para premiar um esforço reprodutivo. Faz supor que, representada ao longo da história por flores, cálices e monstros, a genitália feminina assusta por retirar do homem uma certa ilusão de controle.

Em seu livro de estreia, Personas sexuais: arte e decadência de Nefertite a Emily Dickinson, a intelectual americana Camille Paglia fala sobre os mistérios que circundam a vulva e o útero na mitologia antiga. Em diversas tradições, essa região da anatomia feminina surge como um reino escuro, capaz de tragar desavisados. Uma das lendas fala sobre a “vagina dentada”, espécie de monstro castrador de homens. “Mitchell Lichtenstein, que foi meu aluno, ficou com essa cena na cabeça e acabou fazendo um filme de terror satírico chamado A vagina dentada, sobre uma jovem que percebe que sua genitália tem o poder de castrar”, conta Paglia em entrevista à Trip. “Você me pergunta o que significa o pênis hoje e eu acho que ele continua significando o poder, ainda que decaído. Já a vulva, bem, a vulva é essa instância supostamente dentada que ameaça o poder”, explica.

O mito da vagina dentada revela como o homem heterossexual vê o sexo das mulheres, diz o médico e psicanalista Francisco Daudt: frequentemente, com medo. “Elas detêm o poder de escolha, já eles devem se apresentar com ereção duradoura e orgasmo visível para que possam lançar suas sementes. A mulher não precisa de uma exibição de tesão tão consistente para procriar, suas falhas sexuais são mais camufláveis. Para o homem, resta o medo de falhar diante do ícone desejado, que se torna ameaçador”, diz.

CASTRAÇÃO OCIDENTAL

Há muitos modos de desarmar uma vulva. Cintos de castidade já confinaram esses monstros descontrolados. Em alguns países do Oriente, a amputação do clitóris busca minar fisicamente o prazer feminino. No Ocidente moderno, a obsessão pela beleza dos corpos atinge as partes baixas com procedimentos que vão da depilação a cirurgias estéticas que diminuem a sensibilidade da região, como a cirurgia de redução do capuz clitoriano e a ninfoplastia.

A exigência higienista de que a mulher seja bonita em seus mínimos detalhes mina o prazer, é a sutil castração ocidental. “A ideia de beleza e adequação passa a ser uma noção moralista, não obstante os corpos considerados bonitos ficam gradualmente mais assépticos”, diz Marcos Pais, psiquiatra do hospital Vera Cruz, em São Paulo. Há muitos modos de desarmar uma vulva: a tentativa da vez é a padronização. 

O Banco Mundial da Genitália é uma plataforma de compartilhamento de fotos de órgãos sexuais que já recebeu mais de 5 mil imagens. O projeto, criado por João Kowacs, Caroline Barrueco e Luiza Só, busca catalogar a diversidade das partes baixas com fotos de pessoas trans e cisgêneras (pessoas cuja identidade de gênero coincide com o sexo biológico). “O banco pode ser definido como um projeto artístico, uma militância, um arquivo de imagens”, explica Kowacs. A ideia surgiu depois de uma transa, quando João virou para Caroline e disse: “Alguém tinha que fazer um catálogo de genitálias humanas”. A ideia se dissipou, como tantos projetos que começam na cama, mas acabou concretizada há dois anos.

Expostas em um site, as fotos do banco não trazem identificação do modelo nem do fotógrafo. Não é possível saber se uma vulva específica veio de Berlim ou do Rio de Janeiro, mas os organizadores tentam imprimir certa coerência. “A ideia do projeto é ser mais informativo do que erótico, por isso a genitália é apresentada fora do contexto sexual, de excitação”, explica Kowacs. “Mais de 95% das fotos que recebemos são rejeitadas, não aguento mais ver foto de pau duro ao lado de latas de Pringles”, ri Barrueco. Atualmente, o banco recebe quatro vezes mais pintos que vulvas. As fotos são enviadas pelos participantes através do site genitalia.me ou tiradas em festas, em cabines especiais desenvolvidas pelos artistas.


"O padrão de vulva que vem se construindo é fechado em si mesmo, com lábios pequenos, lembra um coração. É como se a genitália precisasse refletir os valores que se espera da mulher; é um tipo de vulva que, mesmo exposta, pouco mostra"


Num mundo em que a genitália feminina ainda é tabu, a plasticidade e a maneira como é exposta podem determinar muita coisa. Alexandre Machado foi redator-chefe da Playboy durante a década de 1980 e assinou contratos com artistas importantes, como Sônia Braga e Vera Fischer. Em seu apartamento em São Paulo, pende um quadro com autógrafo de Xuxa, concedido durante seu ensaio para a revista, em 1982. “Naquela época, a censura operava de um jeito cômico. Podia-se, por exemplo, mostrar um seio, mas os dois na mesma foto não, a família brasileira não podia lidar com uma mulher de dois seios.” Para Machado, a vulva continua sendo o epicentro do moralismo: “Qual a diferença entre um nu dito de bom gosto e um de mau gosto? A forma como a vulva é trabalhada. Se aparece escancarada, é de mau gosto. Se é desvelada, se aparece mais como sugestão do que como órgão, aí tudo bem”, diz. "O choque diante da xoxota é que ali já não dá para fingir que o corpo da mulher é uma obra de arte, uma coisa para contemplação. A boceta deixa claro a que veio, intimida o homem.”

O PESSOAL É POLÍTICO

Para Suely Gomes Costa, historiadora da Universidade Fluminense que pesquisa relações de gênero, a imposição de uma “bela vulva” segue a tendência geral de lidar com os corpos como produtos que devem ser constantemente aperfeiçoados: “O retoque na genitália passa a ser visto com a mesma naturalidade de um retoque no nariz ou nas rugas”. Para ela, são consideradas feias as genitálias “largas, espaçosas, assimétricas, gordas, escuras, caídas, com clitóris proeminente, muito peludas ou com pelos que se prolongam pelo ânus”. “O padrão de vulva que vem se construindo é fechado em si mesmo, com lábios pequenos, lembra um coração. É como se a genitália precisasse refletir os valores que se espera da mulher; é um tipo de vulva que, mesmo exposta, pouco mostra”, conclui.

É tanta prescrição de como a vulva devia se portar que talvez o melhor apelido para ela seja mesmo perseguida. As diretoras alemãs Claudia Richarz e Ulrike Zimmermann acabam de rodar o filme Vulva 3.0 (premiado na Berlinale e que será exibido no Festival do Rio, no fim deste mês), que trata de modificações na vulva, desde a circuncisão até as cirurgias plásticas íntimas. Para elas, a radicalização da depilação, somada aos retoques das imagens da pornografia, deixaram os contornos externos da vulva mais expostos (e idealizados), o que acabou incentivando plásticas na região: “A depilação total poderia ser um ritual de afirmação, uma forma de expor e celebrar a genitália feminina, mas acabou acirrando um ideal de beleza absurdo e digital. Mulheres que não celebram nem conhecem bem sua própria vulva ficam extremamente críticas consigo mesmas e se deixam operar para ficar parecendo uma fotografia retocada”, opinam. Não à toa, o Brasil, país que batizou o termo em inglês para a depilação total (Brazilian wax) é também o campeão de cirurgias íntimas, segundo dados da Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica. “A mulher tem medo de ser inadequada em suas partes íntimas, teme que elas não pareçam atrativas para si e para o outro”, explica a ginecologista Ana Vargas.

 

"O pênis hoje continua significando o poder, ainda que decaído. Já a vulva, bem, a vulva é essa instância supostamente dentada que ameaça o poder"

 

O feminismo trouxe para o domínio público questões da esfera privada. Mais do que pregar a igualdade de gêneros, esse sistema de pensamento começou a problematizar assuntos domésticos. “O pessoal é político”, dizia o slogan da segunda onda feminista, iniciada nos anos 1960, ressaltando as ligações entre a experiência pessoal e a estrutura social. “Temas como a dificuldade de obter prazer, a violência doméstica e a masturbação passaram a ser discutidos coletivamente. Priorizar seu próprio prazer tornou-se um posicionamento político da mulher”, explica Marcos Pais.

“Historicamente, nota-se uma ligação entre os avanços da mulher no campo sexual e as exigências estéticas que surgem para minar esse avanço”, diz Pais. Quando o comprimento das saias começou a subir, surgiu a paranoia com a celulite. Agora, calças justas, biquínis e uma maior exposição da vulva acarretam em preocupações sobre formatos e cores da região íntima, o que alimenta uma indústria de clareamentos, plásticas e adereços como o famigerado cuchini, usado pelas misses para camuflar a dobrinha da xoxota, dando aquele aspecto de Barbie. “Essa busca pela beleza se confunde muito com uma ação moralizante. Quando já não é possível dizer que as mulheres não podem mostrar uma parte do corpo ou fazer algo, o passo seguinte é criar uma série de restrições estéticas e vagamente médicas para impedir aquilo”, conclui Pais. (Colaborou Flora Lahuerta)

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