Muito prazer, angústia

por Nathalia Zaccaro
Tpm #172

Liberdade sexual é transar com todo mundo de todos os jeitos. 
Ou não. A compreensão do que é sexo livre para uma mulher passa 
por machismo, siririca e Leila Diniz

"Eu posso dar para todo mundo, mas não dou para qualquer um – não sei de quem é essa frase, mas gosto dela”, disse a estudante Gabriela Jacques, 22 anos, durante uma conversa inflamada sobre liberdade sexual com outras garotas da sua idade. A frase de que ela gosta é de Leila Diniz, ícone do feminismo brasileiro, e foi disparada em resposta à investida de um coronel no auge da ditadura militar. A maneira como Leila defendeu sua sexualidade ainda inspira mulheres em movimento por suas liberdades, mesmo depois de inúmeras transformações sociais. Quase 50 anos mais tarde, sabendo que podem dar para todo mundo, garotas como Gabriela investigam a si mesmas para tentar sacar os prazeres e as angústias de uma recém-conquistada liberdade sexual.

“Quem foi adolescente nos anos 2000 encara com muito mais naturalidade experiências homossexuais e relacionamentos amorosos triangulares”

“Existe uma mudança geracional de descoberta de sexualidade. Quem foi adolescente nos anos 2000 encara com muito mais naturalidade experiências homossexuais e relacionamentos amorosos triangulares, por exemplo”, explica a antropóloga Ana Laura Lobato, especializada em gênero e juventude. Menos da metade (48%) dos jovens entre 13 e 20 anos se identifica como heterossexual, segundo pesquisa de 2016 feita pela J. Walter Thompson, nos Estados Unidos. “Mulheres mais jovens entenderam que sua iniciação sexual não precisa ser necessariamente com homens, existe a possibilidade de intercalar combinações variadas, sem a obrigatoriedade de declarar nada como definitivo”, diz a psiquiatra Carmita Abdo, coordenadora do Programa de Estudos em Sexualidade da Universidade de São Paulo.

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Transar sem precisar corresponder a expectativas românticas ou reprodutivas permitiu que mulheres começassem a se compreender como seres sexuais, que têm desejos, fantasias e vontade de gozar, sem ficar lembrando o tempo todo que não importa o que os outros pensam. É hora de fazermos o que quisermos. “Faço sexo com pessoas que acabei de conhecer porque deu tesão, raramente repito transas, curto demais minha suposta liberdade, mas, ao mesmo tempo, fico mal, não sei explicar o motivo”, conta Letícia Ferreira, 19. Helen Ramos, a Hel Mother, falou sobre esse incômodo em um vídeo do seu canal no YouTube. “Eu já caí nessa cilada de dizer sim só porque conquistei isso, essa liberdade. E depois me senti um objeto, alimentei a plantinha do machismo com adubo. É difícil.”

Se transar casualmente, com homens, mulheres, um ou mais parceiros, e sem culpa, é uma conquista nossa, abdicar dessa possibilidade seria sucumbir à norma? O medo de não estar sendo livre como deveria pode ser uma das respostas para o vazio que rola às vezes. “Quando você passa por um processo de consciência de que uma regra não é boa para você e decide abdicar daquele padrão, é comum sentir que precisa corresponder à oposição desse padrão, é algo típico de situações de transgressão social”, explica Ana Laura.



Os quereres

“Eu transava com pessoas com quem não queria transar para afirmar minha liberdade, e pensava: ‘Ué por que não vou querer? O que está me impedindo?’”, conta Mariana Rezk, estudante de relações públicas. A cena que rolava em seguida era sempre a mesma: ela acordava em casa, outra pessoa ali do lado, e tudo que Mariana conseguia sentir era vontade de que aquilo acabasse logo. “Me julgavam e eu ficava insegura, para voltar a ter certeza de alguma coisa eu me colocava em risco. Depois, tentava fingir que nada tinha acontecido”, conta.

Segundo a psicanalista Maria Lucia Homem, estamos desvendando quais narrativas nos foram impostas e as colocando em xeque. “Outra parte do processo é entender o que queremos diante disso, é muito difícil dar conta dessas demandas díspares – do mistério entre o que nos foi dito e o que de fato somos – sem se permitir investir em autoconhecimento”, completa. 

Uma coisa a gente sabe: queremos gozar. E queremos poder escolher como vamos gozar. Estar na “vanguarda do comportamento”, como define Maria Lucia Homem, explorando espaços novos, abdicando do tradicional, é um caminho. E é uma possibilidade que precisa, sempre, ser defendida. Mas a intimidade física e a subjetividade emocional nem sempre acompanham as lógicas racionais e combativas com as quais nos identificamos. “Existe um abismo entre o meu discurso, o que eu acredito, e como me sinto em relação a mim mesma”, diz Gabriela Jacques. Encontrar os caminhos que realizam nossos desejos sexuais é mais complexo do que abraçar uma possibilidade que se apresenta, especialmente quando temos consciência das pressões de gênero que ainda atuam de forma tão intensa.

“Existe um abismo entre o meu discurso, o que eu acredito, e como me sinto em relação a mim mesma”

Aos 19 anos, Kate Bernardi está precisando se convencer de que não há nada errado com a maneira como se relaciona com sexo. “Conversando com minhas amigas, todas comemoram ser muito ‘transudas’, dizem que estão com a libido no teto e que temos que explorar isso. Mas não me sinto assim. Minha libido não é a mais alta do mundo – não mesmo. Como não vejo representatividade nenhuma desse sentimento, parece que estou a favor da opressão feminina”, conta. Para Maria Lucia, a densidade de nossa experiência sexual independe de sua configuração – pode ser com ou sem amor, com ou sem múltiplos parceiros. “Temos que respeitar as estruturas de nosso ser. É plenamente possível exercer o jogo erótico penetrando mais fundo em sua própria intimidade e deixando de lado o fator quantitativo”, diz a psicanalista.

Mesmo quem subverte os modelos de relacionamento tradicionais e experimenta novos formatos precisa lidar com desejos que parecem inadequados à lógica da liberdade. Mariana Ribeiro, 22, já namorou três caras ao mesmo tempo. Agora, ela namora só dois. Em nenhum dos casos a monogamia fazia parte do combinado. Com um deles, a relação já soma quatro anos. É difícil não pensar no futuro. Morar juntos? Filhos? “Existe um script de como deve ser nossa vida e eu nunca acreditei nele, por isso construí um esquema diferente para mim hoje, mas me angustia não saber como sonhar o futuro, tento não ficar pensando nisso para não pirar, acredito que o caminho vai surgir enquanto sigo”, diz. 

A presença de convenções como maternidade e casamento no imaginário feminino é muito profunda e é desafiador perceber que o que você quer não é compatível com um núcleo familiar tradicional. Mas o tradicional não é o único trilho. Negar a imposição desse script, como definiu Mariana, pode significar incluir maternidade e monogamia em novas configurações. “As parcerias atuais estão se reorganizando e buscam, a duras penas, maneiras de se adaptar aos desejos contemporâneos”, esclarece Maria Lucia.

Oráculo inexplorado

Conhecer nossos desejos é um atalho para a liberdade e isso passa (penetra, lambe, beija e acaricia) por nossas vulvas. Conhecer o próprio corpo não é algo óbvio nem natural. Vagina é presença na ausência. Cavidade oculta e misteriosa que muitas mulheres não exploram. “A despeito do gênero do parceiro ou da parceira, meninas mantêm a crença de que seus corpos são propriedade sexual de alguém, para ser usado por outra pessoa. A masturbação feminina ainda é um tabu”, diz a psiquiatra Carmita Abdo.

O poder de vibração, de gozo e de força de nossos corpos é demonstração intensa de liberdade sexual. E, portanto, foi historicamente negado às mulheres. “Uma garota saber que é saudável se masturbar não significa que ela vai se sentir à vontade, ou que ela vai querer fazer isso em casa. Ser revolucionário em um espaço público, na rua ou em uma festa, é mais fácil do que enfrentar a repressão, mesmo que subjetiva, dentro de casa”, conta a antropóloga Ana Laura Lobato. Se é por isso ou não, ela não sabe, mas Carole Lima* não curte bater uma siririca. “Talvez eu não saiba o que estou fazendo ou tenha um bloqueio. Já tentei, mas não lido bem com a prática. Se for um cara me tocando, eu adoro, mas não gosto de me masturbar.”

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Carol Martins, 22, integrante do coletivo feminista Geni, da faculdade de medicina da USP, participou da organização de uma oficina de siririca na própria universidade. “Foi uma roda de conversa. É difícil falar entre amigas sobre esse assunto, foi importante enriquecer um pouco a discussão, mas ficamos impressionadas com a repercussão negativa que a proposta causou, muita gente achando um absurdo falarmos nesse tema”, conta.

Para além da masturbação, nos perceber fisicamente envolve dedicar atenção aos ciclos menstruais e às respostas físicas de nossas escolhas. “O corpo feminino é muito patologizado, estamos sempre tentando corrigi-lo. Mulheres são mais medicalizadas e passam por mais procedimentos desnecessários que homens”, explica a médica Luiza Cadioli, integrante do coletivo feminista Sexualidade e Saúde, em São Paulo. Durante suas consultas, Luiza sugere que as pacientes peguem os aparelhos ginecológicos, penetrem em suas vaginas e sintam o próprio colo do útero. Desde os anos 80, o coletivo organiza encontros chamados Fique Amiga Dela, em que mulheres são convidadas a explorarem suas vulvas com ajuda de espelhos e perceberem variações, rugosidades e secreções de suas vaginas.

“O corpo feminino é muito patologizado, estamos sempre tentando corrigi-lo”

“Já me senti muito desconectada do meu corpo. No começo da vida sexual, eu nunca me negava a transar com meu namorado, mesmo sem vontade. Eu fingia que gostava, mas contava os minutos para terminar. Eu não me entendia”, relembra a estudante Mariana Ribeiro. Estar distante das próprias fantasias é muito angustiante. Compreender em que esfera opera seu desejo e ir a fundo nisso é a plena liberdade, de acordo com Maria Lucia Homem. “O gozo pode ser mais ou menos dramatizado, mais ou menos romântico, não importa”, diz.

Flerte com o precipício

Afrouxar opressões machistas que por séculos ditaram o que pode ou não ser feito da vida – e do clitóris – de uma mulher é, sem dúvida, ampliar nossas possibilidades de felicidade. Não há chance de plenitude para uma mulher moderna sem a existência de algum nível de liberdade. Ter que inventar sua narrativa sozinha e seguir sem garantias é assustador, é um flerte com o precipício, e é liberdade. O imaginário simplista de que ser livre é viver em um êxtase absoluto e tranquilo é bastante distante da experiência confusa e intensa que estamos experimentando. “Somos menos livres do que supomos, a gente recua diante da liberdade visceral”, conclui Maria Lucia.

“Somos menos livres do que supomos, a gente recua diante da liberdade visceral”

Dá medo mesmo. Um pouco de ansiedade é parte do processo. E só o que dá para ter certeza é de que não existe uma liberdade mais livre que a outra. Não existe conduta que garanta liberdade sem respeito à subjetividade de cada uma. É íntimo. Mulheres ainda brigam para serem respeitadas, ouvidas, contratadas, bem pagas. Brigam para não serem estupradas. O ideal de liberdade feminina é tão amplo e diverso que decretar um modus operandi libertário para a vida sexual de todas sem respeito ao individual de cada uma é oprimir. Gozar é um ato revolucionário que não precisa se submeter a nenhuma outra lógica que não seja a do prazer.

“Os momentos em que senti que estava descobrindo alguma coisa sobre mim foram situações em que estava OK querer coisas e tudo certo não querer coisas também. Está tudo bem ir entendendo como quero me colocar e ir aceitando como me sinto. Não é resposta, mas acho que é um primeiro passo”, diz Gabriela Jacques. Na real, aceitar nossos desejos é bem mais que um primeiro passo.

* O nome foi trocado a pedido da entrevistada.

Créditos

Imagem principal: Eugenia Loli

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