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Nair Benedicto e Alemberg Quindins

por Lia Hama

A fotógrafa conversa com o diretor da Fundação Casa Grande

“Para que a poesia serve? Para que o poeta cante a sua própria terra com a sua gente.” A frase é de Patativa do Assaré, um dos mais famosos poetas e compositores do sertão nordestino. Pois “cantar a própria terra” é uma das missões da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, centro cultural sediado em Nova Olinda, cidadezinha de 13 mil habitantes no interior do Ceará. Foi lá que ocorreu o encontro entre o diretor-presidente da instituição, Alemberg Quindins, 46 anos, e a fotógrafa paulistana Nair Benedicto, 70. Os dois estão entre os 13 homenageados do Prêmio Trip Transformadores 2010, que acontece dia 27 de outubro no Auditório do Ibirapuera, em São Paulo.

“A Casa Grande foi criada em 1992 com o objetivo de resgatar a memória do povo da região do Cariri”, explica Alemberg, fundador do centro ao lado de sua mulher, Rosiane Limaverde. A sede fica na casa mais antiga de Nova Olinda, que era do avô de Alemberg. A chamada Casa da Fazenda Tapera era um ponto de passagem da estrada da boiada que ligava o Cariri ao sertão de Inhamuns no século 17. “Antes de ser restaurada era tida como mal-assombrada”, conta Alemberg.

Hoje é um local cheio de vida, cercado por paineiras que oferecem sombra contra o escaldante sol do sertão. Suas paredes azuis dão abrigo a crianças e jovens que, fora do período escolar, vão lá brincar, jogar bola e participar dos laboratórios de conteúdo e produção. Na ONG, funcionam um canal de TV, uma rádio comunitária, uma editora de gibis e um museu que conta a história da região, famosa por seus sítios arqueológicos. Há biblioteca, sala de internet, gibiteca e videoteca.

Foi para conhecer de perto esse local que Nair viajou quase um dia inteiro. Saiu de sua casa em São Paulo, voou até Juazeiro do Norte, terra onde viveu padre Cícero, e encarou mais duas horas de carro sertão cearense adentro até Nova Olinda. Com alma de repórter e energia de quem aparenta ter bem menos do que seus 70 anos, a veterana do fotojornalismo registrou tudo o que viu em sua câmera digital.

No encontro promovido pela Trip, entre um gole e outro de café fresquinho, Nair e Alemberg conversaram longamente. A fotógrafa contou sobre seu passado de militância de esquerda, que a levou a ser presa e torturada no regime militar.

Nos anos 60, a casa onde ela morava em São Paulo com o então marido, o empresário francês Jacques Breyton, era ponto de apoio aos integrantes da Aliança Libertadora Nacional, organização guerrilheira que lutava contra a ditadura.

Na cadeia, Nair conviveu com a candidata do governo à presidência, Dilma Roussef. Mais tarde, participou de reuniões que levariam à fundação do Partido dos Trabalhadores, em 1980.

Em 1969, quando Nair foi presa, Alemberg tinha 5 anos. “Era como se eu fosse aquele garoto do filme A vida é bela, de Roberto Benigni. Vi esses grandes acontecimentos pela ótica de uma criança, sem entender seu significado”, conta. “Nessa época, eu morava na região do Araguaia. Jogava futebol com outros moleques e via os caminhões do exército passarem. Acenávamos para os soldados.”

Em outro episódio, o garoto sentiu o regime militar na pele, ainda que por vias tortas. “Eu e meu irmão sabíamos quando íamos apanhar quando nosso pai prendia o cachorro. Era o animal de estimação do meu irmão e ele atacava quem chegasse perto do dono. Sabíamos que íamos apanhar, mas não sabíamos por quê. Meu pai desceu o cinturão e disse: ‘Isso é pra vocês nunca esquecerem que hoje o Médici entregou o governo ao Geisel’.”

Após o fim da ditadura, Nair manteve seu perfil engajado. A pedido da Unicef, documentou a realidade de mulheres e crianças da América Latina. Retratou índios e movimentos sociais. “Procuro usar a fotografia para chamar a atenção para as causas que considero importantes”, diz a artista, que tem suas obras nos acervos do MoMA, de Nova York, do Smithsonian Institute, em Washington, do MAM-RJ, entre outros.

Local X Global

Ao conhecer o trabalho de Alemberg, chamou a atenção de Nair seu caráter universal. “Vocês falam da cultura do quintal de vocês, mas que é universal. Seja local para ser global. É isso o que vocês fazem”, afirma. De fato, foi-se o tempo em que o público da produção da Casa Grande se restringia ao sertão. Os meninos ganharam o mundo.

A banda infantil Os Cabinha já fez shows ao lado de artistas consagrados, como Lobão e Arnaldo Antunes. Marcelo Camelo é fã declarado deles. Outra banda da fundação fez turnês em Portugal, na Alemanha e na Itália. Os programas da TV Casa Grande são transmitidos pela TV Futura.

A molecada aprende a usar as mais modernas tecnologias para divulgar suas tradições – usando, por exemplo, o MySpace. “A Casa Grande possibilita que os garotos experimentem todas as ferramentas tecnológicas”, explica Alemberg. “Ao mesmo tempo, temos a preocupação de garimpar materiais de referência. Assistir a um filme de [Akira] Kurosawa é algo que deve fazer parte da formação de qualquer um.”

Assim como provocou a admiração de Nair, a Casa Grande também atraiu a atenção de personalidades. O teatro da fundação leva o nome de Violeta Arraes, irmã do político Miguel Arraes e madrinha do local. Maria Elisa Costa, filha do arquiteto modernista Lucio Costa, foi a responsável pelo projeto. Caetano Veloso escreveu o texto da entrada. A coreógrafa alemã Pina Bausch, o ex-ministro da Cultura Gilberto Gil e a atriz Regina Casé estão entre os que já passaram por ali. A sensação é mesmo a de estar em um oásis em meio à aridez do sertão.

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