Sem medo, com amor

Após um câncer no ovário, Simone Mozzilli luta para combater o estigma em torno da doença e melhorar a qualidade de vida de crianças em tratamento com seu Instituto Beaba

por Luara Calvi Anic em

Simone Mozzilli visitava hospitais havia cinco anos quando ela própria foi internada para uma cirurgia. Era um cisto no ovário, que precisaria ser retirado, ela sabia, mas estava bastante receosa. “Eu tirei um tumor do cérebro e você está com medo de operar um cisto?”, ouviu de uma criança que passava por tratamento, em um dos hospitais em que trabalhava como voluntária. Desde 2006, ela levava a atividade paralelamente ao trabalho de publicitária em sua produtora de vídeos. Mas, diferentemente do que fazia em sua profissão, esse roteiro ela não escreveu.

Crédito: Arquivo pessoal

A frase da pequena conselheira fez total sentido e ela marcou a operação: um procedimento de duas horas para a extração do cisto. Durou dez. Quando acordou, Simone percebeu que estava na UTI do hospital. “Olhei pra baixo e me vi toda costurada, cheia de esparadrapos. Pedi para chamarem meus pais e ouvi que não era horário de visita. Foi o primeiro choque”, lembra. Os médicos descobriram um tumor em cada ovário – um deles era mais agressivo e já estava em estágio avançado. “Pesquisei e logo vi que tinha poucas chances de cura. Queria muito ficar viva, mas, ao mesmo tempo, separei minhas roupas para ver quem ficaria com cada coisa caso eu não aguentasse.”

Foi hora, então, de assimilar para si a força que oferecia aos outros. Foram oito meses de tratamento intensivo, entre 2011 e 2012, sem que ela abandonasse o voluntariado. Durante esse período, tirava fotos e tomava nota dos procedimentos pelos quais passava para dividir com as crianças – assim como os pequenos pacientes também trocavam com ela. O fato de Simone já circular pelo ambiente oncológico trouxe algum alento. “Muitos processos eu já conhecia. Mas, por outro lado, tinha medo. Diversos amigos meus, crianças, faleceram naquela época.” Inclusive a garota que a encorajou a operar.

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Seu corpo, porém, ignorou as estatísticas negativas que havia pesquisado. Simone se recuperou e fez da experiência que acumulou nessa travessia combustível para seu trabalho como voluntária crescer e se tornar um projeto estruturado de assistência a crianças com câncer. Ao fim do tratamento, em outubro de 2013, começou a concretizar essa vontade criando o Instituto Beaba. Largou sua produtora e, com a ajuda de médicos e psicólogos, passou a produzir informação sobre a doença para pacientes e seus acompanhantes. “Desmistificar e explicar é importante para engajar o paciente. Ele passa a ter maior aderência ao tratamento e melhora a sua qualidade de vida.”

Crédito: Arquivo pessoal

Primeiros passos

O primeiro projeto foi o Beaba do Câncer, um guia ilustrado com mais de cem termos e procedimentos oncológicos que é distribuído gratuitamente em hospitais, bibliotecas públicas e orfanatos, além de um app com joguinhos que trazem informações sobre a doença. Por falta de verba para impressão e transporte, uma lista com mais de mil nomes aguarda a sua vez de receber o guia. “Antes de ficar doente, eu levava uns 40 minutos para conseguir fazer a criança começar a me ouvir. Depois de passar pelo tratamento, entro no quarto e em dois minutos já ganho a confiança. O câncer me possibilitou ser um instrumento para ajudar as crianças a entenderem a doença.”

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Simone defende que a qualidade de vida para pacientes com essa difícil doença passa muito por saber o que está acontecendo com seu corpo. Sua jornada pessoal a fez entender esse poder transformador da informação e da transparência. “A criança sente o que está acontecendo. Você fala que um procedimento não vai doer, e dói. Ela vai perdendo a confiança”, diz. “Conforme você vai conversando e construindo a relação, sente até onde pode falar, o quanto aquela criança está preparada para ouvir.”

Além desse trabalho, o instituto vem realizando, desde 2017, um acampamento anual para 70 crianças e seus familiares terem uma pausa na rotina estressante do tratamento, o que também amplia o contato com os profissionais de saúde. E, já que o foco do Beaba é engajar pacientes e acompanhantes, faz sentido conversar com essas pessoas de perto. “A gente dá ferramentas para os acompanhantes se desenvolverem e deixarem os pacientes terem um pouco mais de autonomia, autocuidado, empoderamento.”

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Durante a visita da Trip ao acampamento, que é realizado em parceria com Fundação Paiol Grande, em São Bento do Sapucaí (interior de São Paulo), participantes fizeram atividades educativas e brincadeiras, além de trocarem ideias e experiências. “Muitas crianças conseguem, em três dias de acampamento, uma evolução que não têm em um mês no hospital”, conta Simone. Um momento simbólico para ela aconteceu em uma conversa perto da fogueira, organizada na última noite de acampamento. “Uma criança pegou o microfone e falou: ‘Minha mãe fez uma amiga’. Com tantos anos acompanhando o tratamento do filho, a mãe não tinha mais amigos”, diz.

Crédito: Arquivo pessoal

Processo de cura

O tipo de tumor costuma definir em quantos anos um paciente é considerado curado. Depois de cinco anos do fim de seu tratamento, Simone voltou à sua médica esperando ouvir o diagnóstico da cura. “Achava que aquele fantasminha da doença ia sair da minha cabeça e que eu ia poder dizer para todo mundo que estava curada”, lembra. “Foi o dia mais difícil da minha vida porque ela não podia garantir que eu não teria uma recidiva depois de cinco anos.” Esse fato, no entanto, a fez reafirmar a importância do seu trabalho.

A paulistana lembra que há pacientes que vivem anos com um câncer metastático (que se espalhou a partir do lugar de onde se originou), mas conseguem manter uma vida saudável e com qualidade. “O trabalho do Beaba não é focar na cura a qualquer preço, mas na qualidade de vida. Vivemos em uma sociedade que busca vencer o câncer. Essa ideia traz dor para os pais que perderam os filhos, como se eles fossem perdedores. Eu não lutei mais do que ninguém, acho que todos vencemos todos os dias.”

Assim, aos 41 anos, Simone segue fazendo diariamente novos amigos, participando dos maus momentos, mas partilhando e vivendo intensamente os bons, que proporciona em seu instituto. O Beaba da amizade e da vida.

 

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Créditos

Imagem principal: Mario Ladeira

Mario Ladeira

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