A cantora e compositora chega aos 40 anos de carreira com disco novo de inéditas, mais perguntas do que certezas e sem medo de se posicionar: ”A gente tem o microfone na mão, e isso assusta muito”
Com dois álbuns apenas na primeira metade do ano, Zélia Duncan esperava estar ocupada neste outono cantando e tocando para públicos ao vivo. Às vésperas do Dia dos Namorados, ela lança, nesta sexta-feira (21), Pelespírito, disco com 15 composições inéditas, feitas junto com o cantor, compositor e guitarrista pernambucano Juliano Holanda – cada um no seu estúdio. A turnê vai ficar para depois da pandemia. Em vez disso, a vencedora de quatro Prêmios da Música Brasileira escolheu transformar suas dúvidas e dores em música e celebrar os 40 anos de carreira com lançamento nas plataformas digitais.
Nas canções do novo disco, tão íntimas e confessionais, Zélia passeia por ritmos como folk e country, rock'n'roll, blues, sertanejo nordestino e pantaneiro. Nele, a cantora propõe perguntas (“Onde é que isso vai dar?”, “O que se perdeu?”), faz declarações de amor (“Nossas coisinhas” e “Sua cara”), acenos e homenagens (“Você rainha”). E fecha o álbum deixando explícita a sua crença de que tudo vai ficar bem (“Vai melhorar”). “O disco foi todo feito nesse clima de mistério. Claro que a vida é um grande mistério, mas a gente está num momento especialmente enigmático, porque estamos lidando com um vírus”, diz.
A perda do pai, que teve uma parada cardiorrespiratória no fim do ano passado, a decisão de se mudar para a casa da namorada, a diretora de arte Flávia Soares, em São Paulo, as incertezas da pandemia e o turbulento cenário político brasileiro foram gatilhos para Zélia dialogar mais com os fãs pela Instagram, onde criou a hashtag #zoionozoio, e falar abertamente sobre feminismo, homofobia, racismo, transfobia, política e direitos humanos.
“Fiz por instinto, tinha acabado de sair daquela campanha violenta que resultou no que estamos vivendo hoje. Aonde eu participaria disso? A primeira vez que vim a público foi dar uma opinião sobre um caso horrível da mulher gay bolsonarista que foi agredida. Na hora de enviar, me pediram um nome e saiu ‘zoionozoio’”, explica a cantora, numa conversa por Zoom à Tpm. Zélia acordou 9h para a entrevista marcada para as 11h, respondeu um e-mail e quando percebeu já estava na hora. “Sou sempre pontual, às vezes eu acho que é até falta de educação da minha parte. Se me deixar esperando, de cara, não terá o melhor de mim.”
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Tpm. Por que um disco cheio de perguntas?
Zélia Duncan. Escrevi por dois anos no jornal O Globo, e minha maior preocupação era não passar a impressão de que sabia alguma coisa, sempre escrevia “penso que”, acho que”, “observando que”. O “zoionozoio” é isso, a certeza está acabando com a gente. Senti que sem querer desse jeito estava ficando mais atual. Com isso, a música veio. Falar mais me fez ouvir mais. Conheci mais gente na internet. Um caminho sem volta.
Faz quanto tempo que começou a se envolver publicamente? No BBB passado. Eu não fico vendo, tá, mas nos dois últimos não tive como não me envolver. Eu fiz uma defesa para a Thelminha, que falava muito de antirracismo. “O dia da reparação”. Um dia recebi uma mensagem dela no Instagram, mandando um beijo. Não esperava. Tudo muito simples, não é uma exposição gratuita.
Qual seu objetivo com isto? O objetivo destas músicas é porque é meu ofício, o meu trabalho, e, claro que como artista e pessoa, é um privilégio poder falar do que estamos vivendo. Este disco, por exemplo, é muito orgânico para mim, sentindo muita dúvida, angústia, tristeza, luto, mas estou viva. Tem tudo isto neste trabalho. Sempre me perguntaram: “Suas letras falam de quê?”. Eu digo a vida. Nas coisas pequenas, onde enxergamos o grande. Espero que este álbum, o que estamos passando em termos destas dúvidas e os sofrimentos, sirvam de combustível para que a juventude possa melhorar o Brasil.
Quando olha no retrovisor 40 anos para trás, o que enxerga? Tudo muito difícil, mas tive muita sorte. Desde garota sabia que queria cantar, isto me norteou. Ter um objetivo tão claro é um privilégio para um jovem. Quando olho para a garotinha de 16 anos começando, me reconheço nela pelo amor com que eu faço as coisas e as surpresas do frescor dentro de mim. Esta garotinha, sem querer, veio me mostrando isso nestes anos todos. Consegui manter este frescor, é o que me salva.
Do seu primeiro show em 1981, na Sala Funarte, em Brasília, até se tornar nacionalmente conhecida em 1994, com o estouro da canção “Catedral”. O que esta canção tem que as outras canções não têm? Se eu soubesse teria feito uma por ano (risos). É tão bonito. Ela estourou seis meses depois que foi lançada. Acredito que tenha sido uma conjunção de coisas, quando você se dirige para algum lugar sem querer saber aonde vai dar. Não pode se dirigir para um sucesso deste tamanho sabendo, isto é apenas uma teoria furada como tantas outras minhas. O sucesso programado pode até vingar, mas é facilmente esquecido. Nem sequer foi minha música de trabalho na época.
Como você lidou com a fama depois de “Catedral”? Quando o disco saiu, eu tinha muita aflição, me sentia plural. Conversei com a Warner naquela época e decidimos fazer um single com quatro faixas, e não tinha “Catedral”. Foi escolhida por Roberto Talma e Mariozinho Rocha com a insistência de Beth Araújo [então empresária da Zélia]. Sempre gostei de Tanita Tikaram, a dona da música, mas não fui eu quem escolheu fazer a versão, mas Beto Boaventura. Eu rejeitei. Só aceitei porque ninguém conhecia, e por uma grande coincidência Renato Russo gravou nesta mesma época, só que em inglês. Não sei dizer o que aconteceu, mas tocou na novela e no dia seguinte minha vida tinha mudado. Nos shows, quando eu cantava “Catedral”, as pessoas começavam a fotografar e a se beijar. E ninguém tinha celular.
O que tem por trás do single “Onde é que isso vai dar?” Um dos versos mais legais diz: “Eu acordo cedo. Palavra solta. Mal lavei o rosto. E a canção brinca na boca”. Quando eu vi, a gente gravou 15, mas temos mais de 20. Juliano e eu foi um encontro muito poderoso, e me fez ter vontade de gravar. O disco tem uma coisa que adoro, o vazio, que tem a ver com o momento que estamos vivendo.
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Itamar Assumpção e Caetano Veloso são dois nomes muito presentes em sua trajetória. Qual papel de Caê nisto? Outro dia gravei na live de Jaques Morelenbaum, um grande parceiro, e a gente cantou “Paula e Bebeto”. Depois virou um especial de TV e me perguntaram: “Como você enxerga a obra de Caetano?”. Mas não sou eu, é a obra dele que me enxerga, sempre tive a certeza de que ele fez estas músicas para mim. Sempre me ensinou, não só musicalmente, mas com o pensamento dele, um dos encontros artísticos mais potentes.
Você viralizou com o poema "Vida em branco" sobre a importância do artista na vida das pessoas. E escreveu: “Vida em branco. Você não precisa de artistas?!”. Isso é um recado para quem? Antes de mais nada, eu vi na internet uma campanha contra a classe artística e claro que artista deixa todo fascista louco porque se comunica com o povo, artista é do povo. A gente tem o microfone na mão, e isso assusta muito. Daí começaram a inventar que a Lei Rouanet é corrupção. “Quem é que precisa de artista? A gente precisa de dentista, engenheiro…?”. Este governo atual é o retrato da falta. Pensamento, cultura, amor pela diversidade que é o Brasil.
O que mais te deixa irritada? Uma coisa que me impressionou na campanha foi o presidente dizer que dorme com revólver embaixo do travesseiro, eu falo isso no “Vida em branco”. Da ilusão que as pessoas têm de que podem viver com arma de fogo, mas sem cultura. O conviver com a morte. Não precisa de artista? Então me devolve os momentos bons, os quadros da sua parede, devolva os discos, os livros. A briga entre desejo e opressão, o feio e o belo.
O que há por trás dos ataques ao feminismo e aos LGBTQIA+? Claro que quando atacam os LGBTQIA+, grupo ao qual eu pertenço, existe uma repressão muito forte, um desejo que não é só sexo, mas de liberdade. Isto apavora fascista. A nossa sexualidade é extremamente subjetiva, e somada à capacidade de raciocinar e falar se torna uma coisa que eles não alcançam, a abstração. Estamos caindo num buraco.
Que responsabilidade tem ser mulher, lésbica e cantora em nosso país? Ser honesta. Não aponto o dedo para ninguém e nem cobro de nenhum artista para fazer o que eu faço, que nem é tanto. Sou uma formiga atômica. Eu, Zélia, me imponho de uma maneira bastante natural e tenho vontade de me expor, mas não de uma maneira kamikaze, me oferecer em sacrifício. A gente tem que pagar um preço, eu pago, e vale a pena por ser honesto. Ser quem eu sou está no meu top five.
“Nossas coisinhas” foi feita para sua namorada? Quem é ela? Uma conversinha, um fio. O nome dela é Flávia [Soares], ela é muito na dela, a diretora de arte do disco, junto com o designer Pedro Colombo. De extremo bom gosto, segurou muito a minha onda nesta pandemia, foi um negócio maluco. Ao mesmo tempo que um monte de casais se separou, a gente se juntou e descobriu que combinava muito. Duas escorpianas, o que faz a gente feliz é a maturidade. Sacar que o realmente é mais importante é estar bem e não ter razão sobre tudo. Parar de apontar. Eu tenho um gênio forte, e ela também. Quando eu decido não falar nada, ou ela, a gente espera passar, besteiras, nossas coisinhas. Ela não tem nenhum problema de aparecer, tanto que no início eu avisei que sou a maior sujeira (risos). A gente sabe da importância de aparecer quando isto for importante para fortalecer as pessoas.
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Aos 56 anos, uma escorpiana natural de Niterói se mudou para São Paulo. O que te fez deixar o Rio de Janeiro? Vou ter que tocar “Nossas coisinhas” para te responder. Foi a Flávia. Ela é carioca, mas mora aqui faz muitos anos. A gente está ficando mais velha, querendo ficar mais perto. Com a pandemia, as coisas se apressaram. A ideia era eu ter minha casa, mas foi ficando bom. Tenho uma relação muito boa com São Paulo. De Itamar a Thathi, tenho muitos ídolos aqui. Não sei como é morar aqui porque estou dentro de casa. Apesar de frequentar a cidade há décadas, não sei como vai ser. Mas sei que a parte cultural é muito interessante. Mas nada é irreversível. A vida é tão breve, surpreendente. Tenho saudade do Rio, minha mãe, minha família, meus amigos.
O primeiro show vai ser aonde? Em São Paulo. Foi aqui que tudo foi feito. Dos meus shows, 99% estrearam em SP, então acho que esta tradição não vai ser quebrada. Minha abstinência é do palco, o primeiro que me chamar eu vou correndo. A vida ficou muito mais triste sem o palco. A gente vai disfarçando fazendo disco e tal, mas não é a mesma coisa. Precisamos do palco.
Pelespírito faixa a faixa, por Zélia Duncan:
1) “Pelespírito”: Essa letra foi feita num espasmo, de uma só vez, o que nem sempre acontece. Eu estava num momento especialmente difícil, física e emocionalmente. Sempre tenho à mão um lápis e um papel e comecei a escrever “Tô pele e espírito / Tô por um fio dessa minha blusa”. Tudo o que eu escrevia era exatamente o que eu estava sentindo. Nenhuma vírgula foi mudada, nenhuma palavra.
2) “Onde é que isso vai dar?”: Ela é explicitamente para esse momento. Mas tem uma particularidade que eu adoro. Ela é literalmente um diálogo meu com o Juliano Holanda. Umas das músicas que me fez querer fazer o disco.
3) “Tudo por nada”: A última a ser gravada, aos 46 do segundo tempo. Eu estava assistindo na internet a Marcia Tiburi, uma amiga querida que admiro profundamente, que estava falando umas coisas tão interessantes. E ela começou a falar sobre como é importante que você sinta alguma coisa para poder ajudar os outros.
4) “Vou gritar seu nome”: Uma das três músicas “fofas” do disco. Curioso porque sempre tem uma pontinha de tristeza. Eu acho que as coisas tristes não são necessariamente bonitas, mas quase sempre as coisas bonitas têm um pouco de tristeza.
5) “Nossas coisinhas”: Absolutamente especial pra mim. Eu fiz para a Flávia, minha companheira. As músicas têm esse negócio de servir para todo tipo de situação se você se identifica com elas.
6) “Viramos pó?”: É a outra pergunta que tem no disco. Tem uma coisa importante que eu estou tocando violão e cantando, mas todo o arranjo foi feito pelo Christiaan Oyens, meu parceiro, meu compadre, meu amor, que hoje mora em Londres.
7) “Raio de neon”: É outra “fofinha”, gostosa. Tem um solo de guitarra daqueles que eu adoro, que está te falando uma coisa. Não apenas um solo que está mostrando habilidade. Ele está contando uma história com a melodia. A gente já estava contaminado com outros vírus, o do ódio.
8) “Nas horas cruas”: É o rock'n'roll do disco, que também fala da situação mais explicitamente, sobre ficar em casa. “Quais são as armas que usamos dentro de casa, nas horas cruas, sem nada?”. Eu escolho o amor. E você?
9) “Sua cara”: Confessional e pessoal, porque eu a fiz para o meu pai. Ele morava em Rio Claro, eu estou em São Paulo. Então, fui de carro até a cidade dele algumas vezes. Numa dessas ocasiões, eu voltei e fiz essa letra, que diz “a sua cara tá grudada em mim”. Virou um blues.
10) “Passam”: Foi uma das primeiras músicas que eu fiz com o Juliano, ainda sem saber que ia virar disco. Foi num momento também difícil, que eu estava chateada com um monte de coisas.
11) “O que se perdeu?”: Essa é bem diferente, outro diálogo meu com o Juliano. Também tentando pensar onde que a gente adoeceu. Onde a gente adoeceu emocionalmente, no discurso, socialmente.
12) “Eu e vocês”: É uma balada bem simples e que se propõe a ser bem simples mesmo. Estou fazendo quatro décadas de contato com o público. E, de repente, esse corte.
13) “Eu moro lá”: Ela é um pouco diferente do resto do disco. Teve uma época em que eu vi algo na internet sobre o Nordeste. Sou filha de baiano, sou nordestina também e tenho muito orgulho disso. E eu fiz essa música como uma declaração de amor pelo lugar de onde a gente vem.
14) “Você rainha”: É uma música muito delicada, cuja letra eu fiz para as mulheres que sofrem violência, para as que até morreram – que não foram poucas –, para as que estão trancadas com seus algozes, para as que não conseguem pedir socorro.
15) “Vai melhorar”: Encerra o disco por motivos óbvios. É o que a gente deseja, é o que a gente espera. A gente está vivo, a gente quer melhorar. “Vai melhorar / Vem melhorar comigo / Contigo eu consigo melhor”.
Créditos
Imagem principal: Roberto Setton