Acusada de “proteger bandidos”, a educadora vive no olho do furacão mas não desiste da luta
Acusada de “proteger bandidos”, depois de ajudar um menor infrator torturado por “justiceiros” no Rio de Janeiro, a carioca Yvonne Bezerra de Mello se viu dentro de um furacão, mas não desiste da luta: para ela, o Brasil ainda pode ser melhor, desde que crie um projeto de educação que junte ricos e pobres, negros e brancos.
Ela vive entre dois extremos da baía de Guanabara, no Rio de Janeiro. Do apartamento onde mora, em frente ao Aterro do Flamengo, a vista é uma das mais bonitas que um brasileiro pode ter, com direito ao Pão de Açúcar em primeiro plano. A quase 20 quilômetros dali, seu lugar de trabalho está em uma das porções menos privilegiadas da baía – o Complexo da Maré, maior conjunto de favelas da cidade (precisamente, 16), onde moram mais de 130 mil pessoas. Ali, 450 crianças têm a chance de estudar, diariamente, nas salas de aula do Projeto Uerê, a ONG que Yvonne mantém com a ajuda de 22 funcionários e doações de pessoas físicas e entidades privadas.
Um dia típico de Yvonne começa às 5 da manhã com a leitura de vários jornais – O Globo na versão impressa e outros nove, do Brasil e de fora, nas versões on-line. Em seguida, ela caminha no Aterro, toma café da manhã e sai pontualmente às 7h30 em direção à Maré. Normalmente, fica lá até às 16h30 – exceto nos dias em que, por conta de uma parceria com a Secretaria Municipal de Educação, visita escolas em outras comunidades do Rio. Encerrado o expediente, encara 2 horas de academia, em busca da boa forma e da “endorfina necessária para lidar com tanto conflito”. Body pump, body jump, ioga, musculação e pilates são as atividades que ela vai combinando de formas diferentes a cada dia. A maratona termina às 20 horas, quando ela ainda tem pique para jantar fora, encontrar amigos, namorar. “Durmo só 5 horas por noite.”
Criadora de um método pedagógico moldado para estudantes com bloqueios de aprendizagem, comuns em habitantes de zonas de conflito, Yvonne, 66 anos, doutora em filologia e linguística, em políticas públicas e em direitos humanos, mãe de três filhos, avó de quatro netos, viúva de um empresário influente [Álvaro Bezerra de Mello, que foi presidente da rede de hotéis Othon], educadora que já capacitou 6 mil professores da rede municipal do Rio e líder de uma organização premiada, poderia estar no hall of fame dos benfeitores nacionais. Mas foi parar na calçada da infâmia das redes sociais: ela é a mulher que, na noite de 31 de janeiro, publicou no Facebook a imagem de um garoto de 15 anos torturado e preso a um poste por “justiceiros” do Aterro. E que foi execrada por gente que a define, nas mensagens mais suaves, como “protetora de bandidos”.
O bombardeio foi tal que, duas semanas depois do episódio, Yvonne apagou seu perfil na rede social, que costumava usar como ferramenta de divulgação (e também de diversão). Os ataques on-line a impressionaram pela virulência, pela quantidade e pela faixa etária (na esmagadora maioria, os agressores são homens jovens, entre 25 e 35 anos). Mas não foram exatamente novidade no currículo da ativista: em julho de 1993, quando socorreu sobreviventes da chacina da Candelária – em que oito menores de rua foram assassinados pela polícia – ela também foi acusada, xingada, atacada nas ruas e rejeitada, inclusive por amigos da alta sociedade, que deixaram de receber o casal Bezerra de Mello.
Na entrevista a seguir, a educadora fala das diferenças entre o Brasil dos meninos da Candelária e o Brasil do menino do Aterro – muito poucas em sua opinião, mesmo com os avanços socioeconômicos da última década, festejados internacionalmente – das origens, com um capítulo especial para a mãe, Lúcia, uma senhora hoje com 100 anos de idade que a ensinou a ter coragem e amor pelos desamparados, da vida dividida entre o hi-society carioca e o wild side dos meninos que adotou como causa, da política, das UPPs, do futuro e desse estranho mundo em que pessoas gritam sem parar, em letras maiúsculas, nas páginas da internet.
Tpm. Acaba de passar um furacão na sua vida. Os ânimos estão mais calmos?
Yvonne Bezerra de Mello. Sim, diminuiu. Aparecem outros assuntos, né? As pessoas vão perdendo o interesse, ainda bem. Mas foram dez dias muito pesados. Juntaram os xingamentos todos com um psicopata que fica postando calúnias sobre o Uerê. Não aguento, chegou a um ponto em que resolvi fechar minha conta no Facebook e fechar o site do Uerê, que já estava em reformulação. Daqui a um tempinho volto.
Você usa redes sociais há muito tempo? Sim, sempre achei ótimo. É útil, você posta lá a polêmica do dia, o pensamento do dia. Mas tô cansada de gente maluca. Gente que perde o controle sobre as frustrações pessoais e vai com tudo pra cima dos outros.
Sua relação com crianças abandonadas começou com a sua mãe, não é? Queria que você falasse das suas origens, e sobre essa história dela. Nasci no Rio de Janeiro em 1947, numa família de classe média. Tenho um irmão e fomos educados por uma mãe sozinha, funcionária pública. Ela se separou cedo do meu pai, que desapareceu. Morávamos no Leme, num apartamento pequeno, de dois quartos, tínhamos a vida toda direitinha: estudamos em bons colégios, nunca faltou nada, mesmo com orçamento apertado. A mamãe dizia desde sempre que a maneira de sobreviver no Brasil seria pela educação. Ela foi uma pioneira, nasceu em 1914 e teve que lutar contra tudo e contra todos pra poder estudar e construir uma vida.
Ela está viva? Sim, com 100 anos. Mora em Teresópolis e está muito bem. Claro, velhinha, com a memória danificada. Mas sustenta um diálogo perfeitamente.
E seu pai? Ele já morreu, mas tive muito pouco contato. Minha mãe dizia uma coisa que é a mesma que eu digo a esses meninos aqui na favela, que raramente têm pai e mãe: o importante é ter alguém que tome conta de você. Na minha época de escola, imagina, isso era um problema. Uma mulher separada era quase uma prostituta. Até certo momento aquilo me incomodou muito, porque as meninas perguntavam: “Cadê teu pai? Por que ele nunca aparece?”. E eu inventando explicações. Até que um dia, com uns 10 anos de idade, parei. Realmente pensei: esse cara não existe, chega desse assunto. Depois, quando eu tinha 14 anos, a mamãe se casou de novo, com o cara com quem ela está até hoje, então tivemos essa figura masculina. Por isso eu digo aos meninos: se tiver uma avó, tia, vizinha, alguém que cuide, já é bom demais. Tem que acabar com esse negócio de que a família ideal tem que ser um pai e uma mãe, tudo bonitinho. Porque assim você está excluindo 500 milhões de crianças deste mundo. Tem tantos outros modelos de família!
Mas, a história com os meninos de rua, como era? A mamãe uma vez por mês ia à Fundação Romão Duarte [instituição que abriga menores], onde ela tinha uns contatos, e sempre trazia uma criança pra passar um fim de semana em casa. Uma dessas crianças, ela adotou depois. Quando eu tinha 13 anos fiz meu primeiro trabalho voluntário, que era ler para crianças cegas no [Instituto] Benjamin Constant. Aos 14, trabalhei no Instituto Pestalozzi, no fim do Leme, com crianças que necessitavam de cuidados especiais. E me dava com os meninos de rua ali perto de casa. Aí, quando eu tinha 17 anos e ia pra universidade, entrei no Projeto Rondon e fui pra Aracati, no Ceará. Fiquei muito sensibilizada com a miséria daquele lugar e ali já entendi que eu queria fazer algo pelas crianças.
"Tem que acabar com esse negócio de que família ideal é um pai e uma mãe, tudo bonitinho. Tem outros modelos"
Você se formou na Sorbonne. Como foi parar em Paris? Eu falava bem inglês e francês, era muito estudiosa. E consegui uma bolsa pra estudar na Sorbonne. A mamãe disse: “Mas, menina, como é que você vai estudar na França? Não tenho dinheiro”. E eu falei: “Não precisa me dar nada, vou me virar, sei fazer tanta coisa! Posso cozinhar, sei fazer muitas coisas”. Fui com pouquíssimo dinheiro, mas três semanas depois eu já estava levando cachorros pra passear, fui ganhando a vida.
Você estudou linguística, certo? Sim, e acabei unindo isso ao meu desejo de atuar com crianças. Eu tinha muitos colegas africanos e nos fins de semana ia com eles aos subúrbios de Paris para almoçar, passar o dia. Via as crianças meio perdidas e perguntava: esses meninos estão bem na escola? Descobri que não, não conseguiam aprender, não tinham concentração. Aí comecei a pensar que este seria meu estudo: problemas de linguagem em crianças em zonas de conflito. Ao longo de dois anos fui a países da África pesquisar a educação. Etiópia, Sudão, Quênia, Angola, Moçambique. Foi todo um processo que me confirmou que crianças estressadas, vivendo em territórios não pacificados, têm grandes problemas de cognição. Muita dificuldade de aprendizado e de integração na sociedade.
"Uma criança de classe média com traumas vai ao psicólogo; esses meninos não têm nada"
Isso foi bem próximo de Maio de 68, né? Quanto você viveu disso? Tudo. Em 68 eu estava lá nas ruas. A minha faculdade era supercomunista, eu lia Marx, Mao, todas essas coisas. E foi muito bom: acho que ter engajamentos aos 18 anos te dá subsídios para depois. Se você não é assim com 18 anos, vai ser quando? Precisa passar por tudo isso para chegar num consenso com você mesma mais tarde, mais madura.
E o que aconteceu depois da Sorbonne? Meu primeiro casamento, com um diplomata sueco. Aos 22 anos fui pra Suécia e fiquei maravilhada em estar num país que era um bastião da social-democracia, onde tudo funcionava, escola, saúde, tudo. Tivemos três filhos: Andrea, a mais velha, nasceu lá. Gunnar e Isabel nasceram aqui. Estivemos em vários postos, conheci muita gente. Até que em 1980 me separei e voltei pro Brasil com os três. Fui trabalhar num banco e paralelamente comecei a trabalhar com meninos de rua.
Onde exatamente? Escolhi primeiro um grupo de Copacabana. Daí, em 1983, me casei de novo, com o Álvaro [Bezerra de Mello, presidente da rede de hotéis Othon, falecido em 2010]. Como eu não precisava mais trabalhar, me dediquei a estudar, a escrever meu livro de pedagogia e a pensar numa escola sem porta e sem janelas, para os meninos de rua. Depois de Copacabana, vieram grupos na Candelária e em Madureira. Todos os dias eu dava o jantar pros meus filhos e ia pra rua. Até que em 1993 aconteceu a chacina da Candelária e eu me vi embrulhada numa grande confusão.
Por quê? Fui a primeira a chegar ao local. As crianças me telefonaram – eu sempre deixava fichas telefônicas com eles, sabia que algum dia ia acontecer alguma coisa. Quando veio a imprensa, eu lá abraçada com aquelas crianças, soube na hora que aquilo ia ser um turning point na minha vida. Eu não poderia abandonar aquilo. Naquela noite fiquei o tempo todo com os sobreviventes, até de manhã. Logo depois fui atrás de um lugar pra eles ficarem. Consegui uns barracos no morro da Cachoeirinha e levei pra lá parte dos meninos. Depois abri uma escola debaixo de um viaduto, que virou a primeira sala de aula do Uerê.
Quem ajudava você? Ninguém, era eu e os meninos. Trabalhei quatro anos sob esse viaduto, que ficava ao lado de uma favela de rua, o Coqueirinho. Com o tempo, as crianças de lá começaram a frequentar também e de repente eu tinha 250 crianças, num espaço horroroso. Foi quando o [Luiz Paulo] Conde, que era prefeito, resolveu acabar com uma parte das favelas de rua, em 1997. Essa favela em que estávamos foi transferida pra Maré, e foi assim que vim parar aqui. Eu já queria sair da rua, entendi que não ia ter os resultados que pretendia.
É impossível recuperar um menino na rua? Sem o mínimo de infraestrura, ninguém dá certo. Eu alfabetizei muitos, consegui algumas coisas, mas depois não tinha desdobramento. Sem família, sem nenhuma ajuda do Estado... Não existia nem abrigo no Rio de Janeiro quando eu comecei. Quando aconteceu a Candelária é que foram abrindo abrigos. Então, se você não tem nem onde colocar as crianças...
Foi o caso do Sandro Barbosa do Nascimento, que acabou na tragédia do ônibus 174? Exatamente, a história do Sandro é típica de muitos meninos que conheci: sem pai, a mãe assassinada, aparece uma tia ou sei lá quem, que não acolhe direito, sem uma escola que faça alguma coisa. Uma criança de classe média que passa por traumas vai ao psicólogo; esses meninos não têm nada. O Sandro foi morar na Candelária aos 10 anos. Um ano depois aconteceu a chacina, ele sobreviveu e ficou algum tempo comigo, mas depois sumiu. Deu no que deu. E vai continuar sendo assim enquanto deixarmos meninos abandonados à própria sorte. As pessoas querem o quê? Que não roubem? Vai lá, passa uma semana na rua sem nada, sem comida, sem cama, sem ninguém no mundo.
"Ter a classe média nas escolas públicas, acabar com a separação, os guetos: só assim vamos mudar"
Como a sua família encarou esse seu trabalho? Seu marido, seus filhos, todo mundo aceitou? Sim, porque eu nunca tirei um minuto do tempo com eles para ir cuidar dos meninos, eram coisas separadas. Eu botava meus filhos na cama – e sueco dorme cedo, 8 da noite – aí saía de casa e começava minha outra jornada até 11 horas, meia-noite. Minha filha mais nova até teve um pouco de ciúme, mas nunca houve conflito. E meu marido sempre aceitou tudo. Pra ele, se era isso que eu queria, era isso que eu tinha que fazer. Quando existe um amor profundo num casal, que era o nosso caso, você aceita o que é importante para o outro.
Mas como é fazer parte de dois mundos tão extremos? Mulher de um homem de negócios, alta sociedade, e ao mesmo tempo vivendo essa dureza da rua. Se eu não fizesse parte desse mundo rico, não ia poder fazer o trabalho na rua. Ok, talvez eu pudesse ser assalariada numa ONG. Mas, no meu caso, uma coisa possibilitou a outra. E o Álvaro foi fantástico, não me tolhia em nada. Nos dias em que tinha que ir pra rua, jamais tentou me impedir. E eu também retribuía. Se ele tinha um jantar importante, eu ia com ele. Deixava para ver as crianças no outro dia. Nunca deixei que isso tivesse efeito sobre minha vida particular.
Mesmo no episódio da Candelária, com toda aquela exposição? Mesmo ali, quando fui xingada, acusada de proteger bandido, tudo igual ao que aconteceu agora, ele ficou do meu lado. Contra todos que me rejeitaram, incluindo aí pessoas da alta sociedade. Ficamos um bom tempo sem ser recebidos. Diziam claramente: não éramos bem-vindos. E ele dizia: “Tô com você e não abro, nós faremos outros amigos”.
Ele morreu há três anos. Você se refez totalmente dessa perda? Aos poucos você vai retomando, né? Ele morreu de ataque cardíaco, uma coisa súbita, na véspera do Natal. É um baque. O primeiro ano foi duro, e ainda tinha um monte de coisa pra ajeitar, a parte prática. No segundo, você vai melhorando. Agora que fez três anos é que acho que me equilibrei. Ele morreu em dezembro de 2010; em outubro de 2013 me senti pronta pra fazer outras coisas, comecei a namorar.
Com quantas crianças você lida hoje? Na Maré, hoje, tenho 450. Mas consegui levar essa pedagogia para escolas do município também. Capacito professores em escolas de comunidades carentes, onde há uma grande maioria de crianças com bloqueios de aprendizagem. Já capacitei 6 mil professores. Porque o cara se forma, tem toda uma base teórica, mas chega numa sala com 40 analfabetos numa favela e desiste. É preciso aprender a desenvolver as capacidades dessas crianças, fazer o cérebro funcionar. É isso que eu faço. Não mexo em currículo, mexo no jeito de aprender.
Como as crianças chegam ao Uerê? Ah, de todo jeito, as mães trazem, o juizado de menores, as próprias escolas. Não tenho triagem, vou pondo pra dentro à medida que eu tenho lugar. Eu amo esse trabalho. E a gente tem sucesso. Consigo mostrar que seria possível ter uma educação de qualidade pra todos, e não como é hoje, essa divisão de águas entre escola pública pra pobre e escola particular pra rico. Enquanto for assim, não vamos ter uma nação.
Que medida imediata de governo seria realmente efetiva? Deixar a escola pública no mesmo nível de uma muito boa escola particular. Pra ter a classe média nas escolas públicas, acabar com essa separação, cada grupo social no seu gueto. Só assim vamos mudar. Só assim vamos ter menos racismo. Quando você entra numa prisão hoje, 90% dos homens e mulheres são negros e pardos. No instituto de recuperação de menores, idem: quase 100% de jovens negros e pardos. Em grupos de meninos de rua, quase todos negros e pardos. Aí você tem um gesto humanitário básico, como fiz com aquele menino – apenas socorrer alguém que foi torturado – e é massacrada. Por ajudar um menino negro! Essa sociedade não evoluiu. Vinte anos depois da chacina da Candelária e estamos na mesma situação.
Mas em muitos aspectos o Brasil melhorou. Eu acho que tá a mesma coisa. Claro, aumentou o poder de compra, você agora parcela em 40 vezes nas Casas Bahia, mas a situação da sociedade como um todo não mudou. Continuamos um país desigual, escravocrata, racista, sem paciência ou planejamento pra nada.
"Se eu não fizesse parte desse mundo rico, não ia poder fazer o trabalho na rua. Uma coisa possibilita a outra"
Essa ascensão de uma classe social antes totalmente excluída do mercado de consumo não tem nenhum reflexo no seu dia a dia na favela? O reflexo é nas coisas dentro de casa, mas os serviços são ruins da mesma maneira. A escola é ruim, o hospital é a porcaria que é. Esse crescimento todo não se refletiu ainda numa melhoria da infraestrutura básica. Fico feliz da vida que tenham TV de 42 polegadas, mas e o resto? E a instrução, a educação? Não têm. O resultado é este: justiceiros pipocando em todo lugar, gente sendo amarrada, nego levando tiro no meio da rua. É um país de jovens contra jovens. Noventa por cento das ameaças e dos xingamentos que recebi agora eram de homens entre 25 e 35 anos. Não é impressionante?
Você fez esse levantamento? Sim, a esmagadora maioria é de homens. E todos jovens. Perpetuando essa coisa de Casa grande & senzala, achando legítimo queimar índio, sair linchando. Aquele menino que eu socorri, ele cometeu um delito. Eu não sabia disso quando fui chamada. Mas, mesmo que soubesse, é legítimo torturar, cortar a orelha, prender num poste? É essa ideia de justiça que se quer desenvolver? É preocupante como os jovens estão sendo malformados.
Você acredita que dá pra mudar isso? Com investimento em educação daria. É o que qualquer governo sério deveria priorizar, porque a instrução determina tudo na vida. Por exemplo: o Uerê existe desde 1998, neste lugar pobre e violento que você está vendo. Até hoje eu só tive três meninas grávidas aqui. Porque instrução engloba isso, a compreensão do próprio corpo, das consequências de seus atos, do que você quer na vida, seus sonhos. Trinta e quatro por cento dos partos neste país são de meninas entre 10 e 15 anos. Todas pobres, né? Porque jovem de classe média quando engravida tem a chance de abortar, todo mundo sabe disso. O Brasil é sórdido. E não faz planejamento, nenhum político pensa para daqui a dez, 20 anos.
Você atua numa favela não pacificada. Como vê as UPPs (Unidades de Polícia Pacificadora)? Elas são necessárias, claro. Mas cadê as estratégias pra um segundo momento, uma evolução? Não tem estratégia nenhuma. E então acontece o que aconteceu na Rocinha, onde 15 policiais matam um indivíduo e tudo vai por água abaixo. Os policiais que estariam ali para preservar certa paz e garantir os serviços são os primeiros a cometer crimes. Como acreditar no projeto? As crianças aqui morrem de medo de ver a favela ocupada por polícia. Porque se mata muita gente, elas assistem às incursões. Então esses meninos de 14, 15 anos não querem. Isso é triste, né?
Você foi candidata a vereadora em 1998. Como foi essa experiência na política? Não gostei nada. Entrei nessa incentivada pelo senador [Francisco] Dornelles, que era muito amigo do meu marido. E eu, muito prática, vi ali uma oportunidade de conhecer o outro lado da moeda. O Álvaro falou: “Tem certeza?”. E eu falei: “É importante conhecer isso por dentro”. E era inacreditável. Você ia falar com as pessoas, apresentar um programa em busca de apoio, e ninguém estava nem um pouco interessado em realizar nada. Só queriam saber se eu ia dar o churrasco no domingo, saber o que ganhariam em troca. Tudo gira em torno do que você vai dar depois. E o pior é que eu quase fui eleita!
Quantos votos você teve? 15.500. Faltaram só 500 votos, é coisa pra caramba.
Qual era seu partido? O PP [Partido Progressista].
Por que você escolheu esse partido? O senador era muito amigo do meu marido e me fez a proposta. E a verdade é que, se você for ver os programas dos partidos, é tudo igual.
"Em duas semanas consegui mudar 82 pessoas que me xingaram. Elas depois me pediram desculpas"
Você acha isso mesmo? Como você se define politicamente? Sempre fui uma social- democrata. De credo, digamos. Mas aqui não existe isso. Nem o partido que tem social-democrata no nome chega perto.
Mas o PP de Paulo Maluf não era um partido estranho para uma social-democrata estar? Era estranhíssimo, mas o que eu queria era conhecer o meio político e essa foi a oportunidade que me surgiu. Na minha cabeça prática funcionou assim. Mas acho que se eu fosse eleita teria entrado pelo cano. É só jogo.
Em quem você votou para presidente nas últimas eleições? Depois do FHC, votei no Lula, na primeira eleição dele. Achei que deveria acontecer uma virada radical no Brasil e ele representava isso. Mas na segunda eleição já não votei nele. Nem votei na Dilma.
Votou em quem? Anulei. Achei que ali ninguém me representava mais. E, neste ano, se são esses os candidatos à presidência, não vou votar em ninguém de novo.
Anular o voto é uma forma de protesto? É uma manifestação com você mesma: não vou votar numa pessoa em que eu não acredite. Não vejo nada de errado nisso, não sou obrigada a escolher quem não me diz nada.
Você diz que não faz caridade. Mas ajudar meninos pobres a coloca, diante da opinião pública, numa posição de “madre Teresa”. Como lida com isso? Olha, quando abordo uma criança na rua, não tô pensando em dar um sanduíche pra ela. Tô pensando o que posso fazer pra que ela saia da rua, que ferramentas usar. Caridade não resolve nada.
Você dá esmola em sinal de trânsito? Não dou. Não resolve. Essas crianças no sinal tinham que estar brincando, na praia, na escola. Como achar normal uma criança estar ali pedindo moedas? No adianta essa coisa momentânea de “ah, hoje encontrei um menininho e dei comida”. Quero mais do que isso.
Você se sente bem-sucedida na sua luta? Tem conseguido mudar mentalidades? Muito. Nesse episódio de agora recebi centenas de mensagens me xingando. Mas, quando sentia que havia uma possibilidadede mudança, escrevia pra pessoa. Em duas semanas consegui mudar 82 pessoas que me xingaram. Elas depois pediram desculpa.
Você respondia, individualmente? Muitas, sim. Tive a pachorra de fazer isso. “Por que você tá fazendo isso? O que você quer? Pensa comigo.” Só de abrir o diálogo já desarma. Teve um cara que tinha sido horrível e no fim pediu pra conhecer o Uerê. Veio semana passada perguntando: “O que posso fazer? Tenho uns amigos querendo ajudar”. Falei: “Vai lá na sua região e mapeia quem são os meninos que estão na rua”. Ontem ele mandou: “Dona Yvonne, já estamos fazendo, me dá um mês e a gente se fala”. A gente pode transformar raiva numa coisa positiva.
Essas pessoas que ficam gritando na internet, você acha que são minoria? São, mas é aquela sementinha que, quando encontra um aqui, um outro lá, vira uma explosão. É a natureza humana. Foi por isso que pensei: vou ter o saco de responder, pra mexer com esses caras. A pessoa me ligava em casa 6 da manhã pra me xingar, e eu dizia: “Meu querido, são 6 da manhã, daqui a pouco saio pra trabalhar. Mas vou te dar 15 minutos pra você me explicar por que está fazendo isso”. “Ah, você protege bandido, você faz não sei o quê.” Aí entro com toda a minha paciência e explico... Tem que ter muito saco, mas vale a pena.
Esses caras que xingam estão meio perdidos, né? Eu acho que a juventude tá perdida em todas as classes. Porque não há noção de cidadania, hoje se criam jovens sem regras, sem parâmetros. Então você tem o pobre que parte pro vale-tudo e acha que o jeito é assaltar, mas também tem o riquinho que consegue tudo comprando e se acha acima da lei. A escola no Brasil é puramente curricular: você ensina as guerras púnicas, mas não ensina o que é conviver em sociedade.
Você teria interesse em trabalhar no governo, na construção de uma política de educação? Não quero trabalhar em governo. Não me põe num gabinete sentada 8 horas que eu vou pirar. No trabalho com a prefeitura eu sou consultora e assim tem funcionado superbem. Trabalho com 150 escolas, todas dentro de favelas. Não tô atrás de cargo.
"Não quero trabalhar em governo. Não me põe num gabinete sentada 8 horas que eu vou pirar"
Em algum momento você já pensou em desistir? Fazer outra coisa da vida? Nunca. Porque acho que tudo tem solução, não posso desistir. No dia em que eu achar que uma criança de 15 anos não tem solução...
Conviver com uma realidade tão pesada cria uma casca, né? Você passa uma imagem de durona. No meu trabalho eu preciso ser durona, mas na vida pessoal sou uma manteiga. Choro com qualquer coisa. Semana passada fui dar meu depoimento na delegacia, sobre o episódio do menino do Aterro, e tinha aquela miríade de repórteres perguntando: “O menino é do Uerê, o menino é do Uerê?”. Eu já estava tão fragilizada que dei um piti. Caí no choro na frente daqueles repórteres todos. Chorei muito. Sentei no chão e o negócio foi brabo.
E o que era esse choro? Exaustão? Tristeza? Era essa sensação da incompreensão. Recebi muita coisa braba. Aí chego à delegacia e ainda encontro uma imprensa querendo me massacrar, perguntando se o menino, o assaltante, era do Uerê... Eu sou humana.
Qual foi o dia mais triste da sua vida? Em relação às crianças?
Em relação à vida toda. Você teve mais momentos difíceis no trabalho ou em situações pessoais? A minha vida pessoal sempre foi muito equilibrada. Evidentemente que a morte do meu marido foi um momento muito duro, mas eu diria que os dias de maior tristeza foram aqueles em que perdi algum menino. Quando tenho que enterrar um deles. E eu já enterrei mais de cem, porque sempre sou chamada. Como no caso do menino do poste. É um destino, é um carma? Não sei, talvez seja. Mas eu vou resolvendo.
Muita gente tem compaixão por um menino como esse, mas ao mesmo tempo tem medo. Como um cidadão comum pode lidar com isso? Eu entendo a sociedade. Tá todo mundo cansado, porque sai na rua e é assaltado, porque teve um parente que foi morto, porque liga a televisão e acha que o mundo só tem morte e que ele vai ser o próximo. Mas em vez de colocar a culpa naquele infeliz, que teve um ano de escolaridade em toda a vida e acabou ali amarrado ao poste, deveria ir se manifestar na casa do governador, do prefeito. Eu não tenho a caneta pra fazer as mudanças acontecerem, então por que me atacar? Esse monte de gente xingando deveria ter ido à casa do governador exigir segurança.
"Esse monte de gente xingando deveria ir à casa do governador exigir segurança. O estado é culpado. Não deveríamos dar trégua"
Mas têm havido manifestações desse tipo. Mas tem que fazer mais, e sempre. Se o Estado não dá o que tem que dar ao cidadão que paga seus impostos, o Estado é culpado. Não deveríamos dar trégua. Eu mais três amigos criamos um grupo chamado Aterro Vivo, para patrulhar as coisas erradas no bairro. Fotografo tudo, a raiz da árvore, o ninho do urubu no poste, tudo, e aí publico, todo dia. Em dois meses fazendo esse barulho, fomos chamados pra uma reunião com um secretário. Se as pessoas se organizarem, vão conseguir muita coisa.
Você tem medo de alguma coisa hoje? Não.
O que mudou em você desde que começou esse trabalho, nos anos 80? Acho que quase nada. Continuo ingênua, continuo achando que tudo vai dar certo, que se você persiste no seu caminho você vai conseguir os seus avanços... Sou otimista.
Você já fez psicanálise? Nunca.
O que você acha que te levou a esse caminho, fora a influência da sua mãe? O que você acha que busca nesses meninos? Não sei, eu já nasci com isso dentro. Sonho com um Brasil melhor, radicalmente diferente. E tenho uma situação financeira que me permite ajudar. Vejo os resultados maravilhosos que tenho aqui no Uerê e só penso nisso: se a gente conseguisse multiplicar... ter crianças pensantes, com vontade própria. O Brasil seria outro.