Você sabe o que é um Armeu?

por Mara Gabrilli
Tpm #122

O aparelho possibilita movimentos que nunca mais fiz desde que quebrei o pescoço

Essa semana eu conheci um equipamento que, mais uma vez, é o único que chegou no Brasil. Fui experimentar o aparelho e fiquei muito impressionada.

Concentro as primeiras horas de todos os meus dias em exercícios físicos para trazer saúde, tônus, força e memória ao meu corpo, mesmo sem mobilidade. Acontece que, quando não estou nesses momentos de malhação, estou trabalhando no carro, no avião ou na cadeira, provavelmente com os braços imóveis. Na minha forma de exercitar, chego a pedalar uma bicicleta com eletroestimulação, que gera movimento. Mas a maioria dos outros exercícios é feita com esses choques individualmente em cada músculo, para que ocorra a contração. Tirando alguns movimentos diários em que a minha assistente faz a ação junto com a minha mão – como tomar banho, escovar dentes, beber alguma coisa, comer –, no resto do tempo a imobilidade prepondera.

O Armeu é um sistema mecânico que acomoda o meu braço, anulando a força do atrito e da gravidade, disponibilizando no meu braço movimentos que praticamente nunca mais fiz desde que
quebrei o pescoço. Os movimentos são intencionais e não vazios. Fico diante de uma tela de computador executando tarefas em formato de games. No primeiro que conheci, tinha que conduzir uma xícara da direita para a esquerda e voltar, recebendo gotas. Embora eu conseguisse ir para a direita e para a esquerda com o meu braço esquerdo, descobri que não conseguia parar. A gente não imagina que pode ter um movimento e não saber parar de usá-lo. Com meu braço direito, que é muito mais travado, a surpresa foi mais incrível. Eu olhava pra xícara, tinha o movimento necessário para conduzi-la do lado direito, mas ia pro lado esquerdo e vice-versa. Notei então que, além de eu ter virado canhota, preciso reaprender a me mexer. Na segunda sessão do Armeu, meus braços já tinham aprendido um pouco e na terceira sessão o esquerdo saiu do nível fácil e foi para o médio. Caminho toda semana num equipamento também suíço da mesma marca, que não conta com os meus movimentos voluntários para funcionar. Ele se chama Lokomat e, de alguma forma, está me ensinando a andar. Essa informação deve estar se acumulando em algum lugar do meu cérebro e irradiando pouco a pouco aos meus músculos. Um dia, espero que possam entender como se fazem cada uma dessas contrações que produzem marcha. Já o Armeu trabalha com um sistema de
realidade expandida, que funciona somente através do meu comando, mesmo sem dominar o movimento. Diferente das pernas, os movimentos dos braços sao extremamente finos, é outro aprendizado.

Atemporal
E você deve estar se perguntando “e daí?”, o que te importa se o meu braço mexe um milímetro a mais, preso a um robô que nem posso levar comigo? Eu sei que você se importa com as pessoas, mas é tão difícil achar tetras como eu, que aparentemente não mexem nada dos braços, que o tema fica muito específico.

Sabe do que eu estou falando agora? Do quão extasiante é a atemporalidade das emoções... Se esses equipamentos já existissem há 17 anos, talvez hoje eu já tivesse outros movimentos.

Fui na exposição do Andy Warhol que está acontecendo em São Paulo. Senti uma palpitação que mexeu na circulação de todo o meu corpo. Todas as obras em Polaroid vieram do Museu Andy Warhol, em Pittsburgh. Sabe o que isso significa pra mim? Depois de meses internada em São Paulo fui para Pittsburgh fazer reabilitação, e a primeira vez que sentei numa cadeira de rodas foi quando saí do centro para passear e ir nesse museu. Fiquei olhando as mesmas imagens, mas com um mundo interno distantemente diferente. Da primeira vez, eu me esforçava pra sair do planeta paralisia, da lesão medular e cair no ritmo de Warhol. Dessa vez, num bailado acelerado que reconstruí no meu espírito de viver, me empatizei natural e rapidamente com o artista.

Hoje, ter quebrado o pescoço não me rouba o presente em nada. Cheguei em casa e abri um vinho da última compra. Indicação do especialista da loja, veio um blend de uvas argentinas e, para minha surpresa, seu nome era... Atemporal... Que delícia!

Mara Gabrilli, 42 anos, é publicitária, psicóloga e deputada federal pelo PSDB. É tetraplégica e fundou a ONG Projeto Próximo Passo (PPP). Seu e-mail: maragabrilli@maragabrilli.com.br

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