Não? Você não é a única. Mesmo livres, as mulheres se cobram cada vez mais
Livres para fazer o que desejam, as mulheres se cobram cada vez mais pelo que não dão conta - o que só aumenta a pressão, a culpa e a busca pela perfeição
Fazer as unhas, marcar reunião, agendar uma consulta, ligar para a amiga, ir ao mercado, responder e-mails, comprar remédio, levar, buscar e dar atenção aos filhos, ao marido, aos pais, fazer comida, ir à academia, planejar as férias e comprar o presente de casamento da prima. As listas feitas pelas mulheres, seja em post-its, iPhones ou num pedaço de papel preso à geladeira, têm de tudo. O resultado, porém, não é uma rotina repleta de satisfações, mas uma lembrança permanente de um cotidiano sem fim e um sentimento de culpa por (claro) não conseguirem dar conta daquilo que, num delírio feminino coletivo, “teriam” que completar. Todos os dias.
Para se ter uma ideia de como anda a rotina de algumas mulheres, pedimos para que quatro delas, com vidas diferentes, abrissem suas anotações. Paula Lavigne, 43 anos, produtora; Mariana Perroni, 30, médica intensivista (e blogueira da Tpm); Sabrina Sato, 31, humorista; e Carla Guglielmetti, 34, empresária carioca, têm mais em comum do que poderiam imaginar: tarefas pendentes. Mariana, por exemplo (como mostra na pág. 56), não conseguiu começar as tão sonhadas aulas de piano, que não saem da sua lista há meses. “O desafio pra mim é achar o equilíbrio entre o que eu gosto e o que preciso”, explica. Mesmo com o dia tomado de atividades, como atender os pacientes da UTI do hospital Albert Einstein, ela se prende ao que ainda não conseguiu encaixar na agenda já lotada. “Queria aprender uma terceira língua e voltar a fazer terapia. Cheguei a marcar sessões às seis da manhã. Mas, honestamente, dormir tarde e acordar às 5 horas para discorrer sobre meus dilemas existenciais não foi muito benéfico”, assume.
A psicanalista Maria Helena Fernandes, do Instituto Sedes Sapientiae, diz que a melhor caracterização da mulher moderna é a mulher elástica. De acordo com ela, o “modelo” no qual nos espelhamos começou a existir a partir da década de 50, quando a mulher começa “a deixar o espaço privado, doméstico, para ocupar o espaço público. Daí em diante, se inicia um acúmulo de atividades domésticas, sociais e profissionais muito bem representado pela mulher elástica, que se estica para além dos limites humanos para dar conta de tudo”, afirma. Mas para que tudo isso? As mulheres passaram os últimos anos conquistando seus direitos e cargos e agora parecem presas a essa liberdade, como se desistir, negar ou priorizar representasse certo fracasso. Quem já não foi a uma festa porque achou que deveria e não porque gostaria de ir? Quem já não pegou um trabalhinho extra quando faltava tempo até para atividades básicas como compras no supermercado?
Escolhas
Para Sabrina Sato, com a rotina de gravações do programa Pânico na Band, campanhas publicitárias e ensaios fotográficos, a vida anda tão maluca que ela nem tem feito muitas listas. “Sempre fui de anotar as coisas, mas a agenda muda com tanta facilidade que ultimamente desisti de ficar anotando”, conta. Carla Guglielmetti, dona da marca de sapatos Sollas, com quatro endereços no Rio, tem dois filhos e é quem organiza a casa da família. “Gostaria de levar e buscar meus filhos na escola com mais frequência”, lamenta. Até o telefonema para marcar visita à escola de natação das crianças está pendente. “Elas ficaram doentes e não pudemos ir. Agora, tenho que marcar novamente, mas está complicado”, diz, prevendo os dias atribulados que estão (sempre) por vir.
As mulheres conquistaram seus direitos e agora parecem presas a essa liberdade, como se desistir representasse certo fracasso
“A culpa faz parte”, acalma a antropóloga Mirian Goldenberg, que estuda o comportamento feminino há 25 anos. “Mas, se tivermos claro que a cultura é assim, e não nós, já lidaremos com isso de outra forma”, indica. Para ela é importante que esse sentimento, de não conseguir ser a mulher elástica, não seja profundo e angustiante. “Precisamos aprender a dizer ‘ou’ em vez de ‘e’. Escolher não faz de ninguém uma pessoa pior”, diz.
“Nas últimas décadas houve muita mudança, muitas conquistas da porta de casa para fora, mas pequenas mudanças da porta para dentro”, diz a pesquisadora Arlene Ricoldi, da Fundação Carlos Chagas, explicando a ponta do iceberg que culmina em mulheres escravas de suas próprias vontades. Na visão da pesquisadora, as mulheres conquistaram postos de destaque em suas vidas sociais e profissionais – dividindo essa responsabilidade com seus parceiros, portanto – sem que sua rotina diária em casa diminuísse.
Escolhas
Por mais que pareça antiquado para as rodinhas modernas, a vontade – e a culpa – de dar conta da vida profissional e da vida pessoal com o mesmo empenho e perfeição é atual – e não tem hora para expirar. A quarta edição do Retrato das Desigualdades de Gênero e Raça, com dados colhidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2009, mostra que, entre a população com mais de 16 anos, as mulheres gastam em média 25 horas semanais cuidando da casa, enquanto os homens gastam somente dez horas. E, mesmo sendo verdade que eles gastam mais tempo em seus trabalhos formais, os dados mostram que as mulheres usam, entre os serviços de casa e do trabalho, 55,3 horas semanais, enquanto os homens, 44,7 horas. A diferença está em todas as classes sociais, provando que o problema não está relacionado ao poder aquisitivo. O relatório ainda diz mais: “Essas diferenças são reproduzidas nas áreas urbanas e rurais, entre brancos e negros, além de atravessarem todas as regiões do país”.
Algumas mais otimistas podem justificar que isso está mudando, afinal, temos uma mulher na presidência da República e, por exemplo, existe um projeto de lei que torna obrigatório o salário equivalente para homens e mulheres que exercem a mesma função. De fato, a causa feminina tem ganhado novos contornos, mas é preciso parcimônia. “Tivemos muitas conquistas, mas com elas apareceram novas demandas. É preciso ter claro que uma conquista não carrega todas as outras”, diz Cláudia Vianna, professora da Faculdade de Educação da USP.
"A mulher caiu em uma cilada invisível. Estaríamos livres para fazer o que desejamos, mas estamos nos cobrando pelo que não conseguimos dar conta", Mirian Goldenberg, antropóloga
De acordo com a psicóloga Ana Maria Rossi, especializada em tratamento de estresse, as mulheres estão estafadas e estagnadas com o que chama de “pressão autoimposta”. A história colocou as mulheres onde estão, mas são elas – e não os homens – que não conseguem se desvencilhar de tanta obrigação. “Os homens não são educados para se preocupar com as pequenezas. O capital do homem não está no corpo nem nos detalhes”, lembra Mirian Goldenberg. Segundo Ana Maria, é preciso aprender a delegar e, mais do que isso, a respeitar formas diferentes de completar tarefas. “Se acharmos que só do nosso jeito é que funciona, seguiremos sofrendo esse estresse autoimposto que nos desgasta de verdade”, diz. A antropóloga engrossa o coro: “A mulher atual caiu em uma cilada invisível. Objetivamente estaríamos livres para fazer o que desejamos, mas estamos nos cobrando pelo que não conseguimos dar conta”, acredita.
É por isso que a pergunta que encabeça o Manifesto Tpm faz sentido para tantas mulheres. Você é livre? Mesmo? Ou está presa a um padrão irreal e a imensas listas de tarefas que comprimem vontades e necessidades e transbordam cobrança? Segundo Mirian, é bom reconhecer e almejar esses objetivos apontados, mas eles não devem ser levados tanto a sério. Em outras palavras: aceitar que algumas coisas serão feitas de maneira “alternativa” e que outras... simplesmente não serão atingidas. “Pagamos um preço alto por nos cobrar a perfeição. É preciso mais leveza. Às vezes, é preciso olhar para si mesma, dizer ‘como eu sou insuportável’ e rir”, finaliza.
“Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é”, nos diz Caetano Veloso. Nós mulheres compreendemos bem essa frase. É muito bom ser mulher porque estamos em movimento, inaugurando um modo novo de ser. Mas esse movimento não é sem sacrifício ou sem esforço, porque o novo nunca vem superando completamente o antigo; eles convivem durante um tempo e as mulheres que vivem este tempo precisam enfrentar a dor e a delícia de serem o que são.
Tarefa histórica Mulheres em busca de prazer e felicidade; mulheres em busca de bons tratos e da relação saudável com seus parceiros; mulheres que querem ser livres e realizadas na profissão; que querem ser donas de seus próprios corpos, assim somos em nosso tempo. Porque aquelas que se organizam na Marcha das Vadias são as mesmas que ainda sonham com um casamento fiel e cheio de afeto, que se pegam pensando em como agradar o parceiro em uma noite especial. Essas mulheres são as mesmas que, em determinados estratos sociais, ainda se viram em muitas para dar conta da casa, do marido que chega cansado (ignorando que ela também trabalhou). São as mesmas que querem ser mães presentes e que, infelizmente, ainda vivem sem prazer dentro de casa. Este é nosso momento histórico. Somos a travessia de um mundo machista, marcado por relações de submissão aos maridos tiranos, para um lugar de igualdade nas relações, de companheirismo e de realização pessoal. Somos a travessia também, quando temos uma atitude machista na forma de chefiar pessoas em nosso trabalho; quando somos egoístas e trocamos o “dar prazer” por “ter prazer”. Ainda estamos em busca, ainda estamos no processo. Este momento de travessia nos dificulta saber qual é o melhor jeito de ser mulher, isso porque não existe uma nova mulher pronta para copiarmos. É no dia a dia que milhões de mulheres inventam um novo jeito de ser. Nossa tarefa é esta: inventar. E, fazendo isso coletivamente, construiremos um mundo com novas formas de relações afetivas e de companheirismo. Nossa tarefa não é simples nem está completa, mas saberemos levá-la com toda a garra que tem caracterizado as mulheres há tanto tempo. **Ana Bock, 59 anos, é professora de psicologia social na PUC-SP, |
Instagram da depressão Você abre seu celular. Ali está, no Facebook. Aquela sua ex-colega de escola que tem três filhos acaba de postar um texto falando o quanto a maternidade é uma coisa maravilhosa. Com direito a uma foto com os filhos, bem penteados, na escola “cabeça” onde estudam. Na “bio”, o golpe final: ela é CEO de uma empresa. Todos os dias comparamos nossas vidas às dos outros. Seja no Facebook, no Twitter, no Instagram ou quando lemos notícias de celebridades. Sensação: todo mundo é feliz e dá conta de tudo. “Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo”, berrava Fernando Pessoa bem antes de o computador pensar em existir. Sábado à noite, você não tem programa. E nem está a fim de sair. Está cansada e de saco cheio. Aí você dá uma olhadinha no Instagram. Todos estão em festas incríveis, ou dando jantares em casa ou passando uma “noite gostosa com as crianças”, bem-vestidas e maquiadas. Ninguém está solitário ou cansado. Tudo piora se você resolve dar uma olhada em uma revista de celebridades. Título lido essa semana, sobre uma atriz que protagoniza uma novela: “Fulana tem perfeita simetria entre vida familiar e pessoal”. E continua. “Mãe de Pedro (1 ano e 6 meses), da união de três anos e meio com um empresário, a estrela está no auge da boa forma, com 58 quilos em 1,70 metro e invejável cintura de 68 centímetros.” A moça consegue estrelar uma novela, ser uma mãe maravilhosa e ter uma forma invejável. Sei. Virando a página da revista, mais depressão. Uma apresentadora de TV diz que tem viajado para gravar um novo quadro de um programa. Mas que é “mãe 24 horas”. Espera. Há algo de errado nessa conta. Se ela viaja, ela não está com o filho o dia inteiro, certo? E todo mundo que é normal (e não fica com o filho o dia inteiro) se sente um pouco pior ao ler uma coisa dessas. Estamos todos cercados de gente perfeita, feliz, bonita, bem informada, fazendo um milhão de coisas ao mesmo tempo. E ainda tendo tempo de tirar fotos para esfregar isso na nossa cara. Um palpite: a vida dessas pessoas não deve ser tão boa assim, senão elas não precisariam ficar aí tirando fotos e publicando na internet ou em revistas para provar. Fica a dica. *** Nina Lemos, 40 anos, é repórter especial da Tpm. Carioca exilada em São Paulo, é autora de cinco livros, amiga fiel e mãe exemplar de dois gatos. Mesmo assim, custa a dormir à noite achando que não fez o suficiente |
Samuel Esteves Ela não deu conta de tudo hoje. Mariana Perroni, 30 anos, médica intensivista • Comprar produtos de limpeza p/ a faxineira • Fazer mão, pé e sobrancelha • Marcar dentista • Chamar encanador para consertar pia do banheiro (namorado que chamou...) • Comprar frutas e verduras • Começar revisão bibliográfica doutorado • Texto blog Tpm • Malhar, pelo menos 3x • Presente Dia dos Namorados • Buscar a calça que deixei p/ fazer barra (tentando há 3 semanas...) • Presente casamento Li • Renovar passaporte |