Você consegue ficar em silêncio?

por Redação
Tpm #66

Olhando para trás, avalio que os momentos mais silenciosos da minha vida foram aqueles que minha mente silenciou, independente das situações inusitadas que pudessem ocorrer perto de mim. Quando silencio, isto em si permite que eu perceba o mundo além

Por Patrícia Varella

No Sul da Índia, o Swami Mahadevananda inicia mais uma aula de Vedanta.  Apontando para um ventilador ligado, pergunta aos 150 de nós sentados no chão: “Quantas hélices existem neste aparato?”. Obviamente não podemos contá-las durante o funcionamento do aparelho. “Assim é nossa mente.” E, sorrindo, continua: “Desliguem a energia elétrica, o falar indevido, e poderão perceber os truques, as hélices da máquina”. Então diz: “A música é o silêncio entre as notas”.  Isso para concluir que “nós somos o silêncio entre os pensamentos”.

Anos se passaram e o meu “ventilador” segue em pleno funcionamento, resistente ao tempo e às minhas frustradas tentativas de desligá-lo! Os que jamais tiveram a experiência de sentar-se em silêncio podem julgar minha falta de progresso, mas os que se submetem a esta prática eventualmente estarão identificados com o que descrevo. Já foi dito por Krishna, lido em escrituras, que a meta é serenidade na agitação. “Inatividade na ação.” Em vez disso, eu fico envolvida  no que está ao meu redor, com assuntos familiares e profissionais, em proporções superiores às reais.

Desconheço a sua psique, mas a minha é capaz de sustentar falar com muitas de mim. A que tem certeza, a que duvida, a destemida, a inconseqüente, a infantil, a idosa e a lista não pára! Eu adoraria que essas vozes calassem quando sento para meditar ou mesmo quando absorvo o ambiente com meus sentidos. Mas, muito pelo contrário, somente tenho a solene oportunidade de escutar os enredos, odisséias, as tramas de uma mente que, se eu não estiver atenta, simplesmente levará cada pensamento à ação ou palavra e fará com que eu sofra ou me alegre por uma criação minha exclusivamente, que pouco ou nada tem a ver com a realidade! Então a simples pergunta que não cala sempre que nos encontramos –   “Tudo bem”? – tem realmente alguma relevância quando a resposta retrata uma alucinação pessoal de como nos sentimos baseados nas histórias que contamos entre nossas orelhas?

Naquele mesmo Ashram, aos sábados à noite, todos os residentes se apresentam como se em um show de talentos para entretenimento ali mesmo. Isso previne que as pessoas saiam daquele ambiente para diversão, até porque o divertimento é questionável. Como diria Cristovão de Oliveira, ícone da terapia ayurvédica e do ensino de ioga no Brasil: “Quem é feliz não busca diversão”. Nesses eventos na Índia, nós geralmente manifestávamos nossas mais naturais aptidões. Recordo-me de uma apresentação muito marcante. Eram quatro pessoas, uma delas encenando meditação e as outras três representando padrões mentais. Enquanto a pessoa tentava meditar, asoutras sussurravam perguntas banais e caracterizavam a distração. Inatividade aparente, mas nenhum silêncio interior.

Assim vivo normalmente, submersa em infinitos pensamentos que me previnem de realizar a pensadora por trás do pensar. No Vedanta, estudamos a respeito de samkalpas, tendências mentais que, segundo as escrituras, são adquiridas no transcurso de vidas. Para remover uma delas, podemos recitar mantras, praticar hatha ioga, fazer rituais devocionais, jejum etc. Mas, de qualquer forma, mesmo que uma mente opere positivamente, é ainda uma mente. “É como trocar uma algema de aço por outra de ouro” –  desta forma me explicou um asceta. A meta é me livrar das algemas, silenciar a mente. Mas será que eu posso ter esperança quando é tão difícil que eu silencie minha boca!? Muitas vezes receio que minha língua seja uma chibata impiedosa no falar ou no saborear – confesso que em ambos, geralmente.

Em uma vivência recente, Cristovão, meu professor, sugeriu que o calar da boca é uma via para alcançar essa tal quietude interior. O Tattva Bodha, tratado de autoria de Shankaracharya (que traduz Conhecimento da Verdade), explica a manifestação do aspecto sutil ao denso, enquanto outras escrituras mencionam os pares de opostos. Os mestres nos ensinam que, embora os pensamentos não possam ser conduzidos, a respiração, sim. O respirar é o aspecto denso do pensar. Então, com exercícios respiratórios, pranayama, é possível reduzir o volume ou a freqüência do show de horrores que me assusta aos gritos – e que somente eu ouço. Lembrei dessa passagem imediatamente ao escutar o Cristovão naquele retiro, porque percebo que, quando estou eufórica, comumente falo sem ponto ou vírgula e respiro (cada tanto) como se saindo de um mergulho de dezenas de metros de profundidade! Minhas pupilas dilatam e, quando percebo, já houve a transformação. Eu estranho a mim mesma! Olho para o planeta e vejo meu caos ali refletido. Quando digo, por exemplo, que a sociedade está em frangalhos, percebo que projeto nela um estado de espírito meu. Minha clara lamentável contribuição social.

Presto atenção nos diálogos que sustento comigo. E as conversas todas dizem nada! Como se não bastasse, não podem me definir porque a mente é instável, então o que penso diz como “estou”, jamais quem ‘”sou”. Embora eu tenha pressa em aprender e realizar isso, minha mestra, a vida, tem a eternidade atemporal do presente momento. Reflito e concluo que me sinto feliz, mas, por razões outras que não as deste exato momento. Em um surto de objetividade, verifico os fatos e eles simplesmente são: que digito isto sentada confortavelmente; o ambiente tem temperatura um pouco baixa; meu corpo não me molesta independente de qualquer doença que tenha; e o sol se põe neste momento auspicioso que não é dia nem noite. “Deus está pintando”, diria um amigo. A beleza do segundo faz com que eu desapareça na paisagem por alguns brevíssimos instantes... Nada existe de ordinário. Respiro fundo. Silêncio é presente momento.

fechar