por Redação
Tpm #71

Depois das salas de tortura de um laboratório cinco estrelas e dos intermináveis dias que separam a biópsia do resultado, dou de cara com uma ilustre desconhecida: minha finitude

 
Tudo começou em uma preguiçosa tarde de setembro, durante a consulta anual com a ginecologista: “Vamos fazer uma mamografia”, sentenciou ela. “Por quê? Você achou alguma coisa?”, perguntei, “Você fez 40 anos, é bom checar mais a fundo. Só isso.” Não basta completar quatro décadas: é preciso começar a ser invadida.

Dois dias depois, lá estava eu no centro de radiologia. Porque faço parte de uma pequena parcela de privilegiados deste país tão desigual, tive acesso ao que é considerado o melhor laboratório de São Paulo. Ali dentro, tudo é feito para acalmar: música clássica, ambiente branco, paredes de água corrente. Nem parece um local de tortura.

Preenchida a ficha cadastral, você é encaminhada a uma sala de estar. Dali, transferida para uma sala igual, só que menor. E, desta, para uma outra, ainda menor, e agora cor-de-rosa. Quanto menor a sala, mais perto você parece estar do médico. Finalmente, entrei numa saleta minúscula acompanhada da enfermeira que lidaria com o maquinário. “Levante o braço esquerdo e coloque seu seio sobre essa plataforma”, explicou minha torturadora particular. “Isso, agora respire com calma.” Quando alguém pede para que você respire, ainda mais com calma, é porque a coisa está prestes a ficar feia.

E então uma prensa começa a baixar em direção ao peito. E continua abaixando, ignorando que entre ela e a plataforma onde o pobre coitado se apoiou existe um pedaço delicado de seu corpinho. E o troço continua descendo até que o peito seja reduzido ao tamanho de uma ervilha. “Se eu não tinha nada, agora certamente tenho. Isso não pode fazer bem”, grito, em súplica. Ninguém liga. “Máquina assim tão insensível só pode ter sido projetada por um homem. Alguém poderia ter dito a ele que o equivalente masculino seria uma outra que esmagasse testículos para melhor examiná-los.” Não há quem se importe com meus devaneios, e a tortura é repetida sob vários ângulos até que você é liberada para voltar à sala cor-de-rosa e esperar que os médicos tenham a certeza de que as chapas estão legíveis. Só então poderá ir para casa com aquilo que um dia foram seus peitos.

Palavras indesejáveis

Esperei. “A doutora quer falar com você”, anunciou a enfermeira depois de vários minutos. Quando a doutora quer falar, coisa boa não pode ser. O que ela diria? “Quer um café?” “Está sendo bem tratada?” “Seu exame é um exemplo para todos os seios do mundo. Você está de parabéns.” “Você nunca fez mamografia?”, foi o que ela disse de verdade. Balancei a cabeça em negação, me enxergando como uma menina de 5 anos. “Achamos uma pequena alteração. Vamos ver o que é na ultra-sonografia, ok?”

Reduzida a eu mesma aos 2 anos, engatinhei para a sala do novo teste. “É, de fato, trata-se de um nódulo”, disse o médico que operava a máquina da ultra-sonografia. “Talvez uma biópsia seja necessária.” Taí duas palavras que você não faz questão de ouvir dentro de um laboratório: nódulo e biópsia.

Sempre soube que esse seria meu fim: uma doença incurável, terminal, cruel. Não acredito em Deus, mas acredito no diabo – e ele estava prestes a me liquidar. Li em algum lugar, algum dia, que a incidência de câncer de mama em lésbicas é altíssima. Por que não me casei quando tive a chance? Justo eu, que pregava a normalidade de meu estilo de vida. Se era para morrer aos 40, teria sido melhor me negar, me vestir de noiva e ter uma penca de filhos.

Deus e o diabo

Os dias que separam a biópsia de seu resultado são intermináveis e delirantes. Para um hipocondríaco que só acredita no diabo, então, são mais doloridos do que mamografia. Pela primeira vez, estava cara a cara com minha mortalidade. Quantas coisas eu poderia ter feito, experimentado, dito, escrito. Quanto tempo perdido com bobagens, com pessoas chatas, com a música errada, com programas vazios, com preocupações descabidas. E todos os livros que eu pretendia ler? E as viagens que queria ter feito? Ah, vida safada, que não ensina que nossa maior riqueza é o tempo que temos nasmãos e insistimos em desperdiçar em causas tolas. Envelhecer, esse troço contra o qual equivocadamente lutamos todos os dias, é o prêmio supremo. A outra opção, francamente, é bem pior.

Woody Allen uma vez escreveu que melhor do que ouvir “eu te amo” é ouvir “é benigno”. Não é melhor, mas é comparável. Porque, nos dois casos, você se sente vivíssimo e grande e poderoso e forte, e entende que ganhou uma nova chance de fazer direito.

Meu tumor não é maligno, ao contrário do de muitas mulheres que, ou adiam a inevitável e desconfortável mamografia e não podem combatê-lo a tempo, ou não têm a sorte de ter acesso regular a ela. Mas a experiência não pode ter sido em vão. Se é para recomeçar, que assim seja. Aos 40. Mais viva, e gay, do que nunca. Como escreveu um tal poeta Russo, é preciso amar como se não houvesse amanhã. Porque, se você parar para pensar, na verdade não há. Tudo o que existe está aqui e agora.
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