Pode apostar que sim
"Estou numa press trip infernal e não sei o que fazer". A mensagem veio em um grupo de viajantes que faço parte, enviada por uma escritora de guia de viagem numa vila no interior da Romênia, sozinha com o guia responsável.
É normal viajar em grupo pequeno e faz parte do trabalho confiar nos colegas. Só que a moça foi sendo assediada pelo cara responsável por guia-la. Começou com piadinhas e culminou com uma insistência pra repartir o mesmo quarto e cama num hostel de beira de estrada que não estava no plano. “Não sei o que fazer,” ela escreveu pelo celular. “Além de estar no interior de um país que não conheço, preciso muito desse trabalho.”
Relativizar o assédio porque acha que deve algo em troca é uma situação que a maioria das mulheres já passou de alguma forma. O cara pagou o almoço, te contratou para um emprego, te apresentou um monte de gente legal. "Pô, ele está te ajudando, por que você não pode dar um pouco de volta?” Toda a relação, seja de amizade, trabalho ou amor, é uma troca. Tudo bem. Mas você não tem que dar nada que não queira. Ponto.
É assim na vida, mas é mais difícil quando você está em um país estranho, sozinha e vulnerável. Todas as minhas amigas "de viagem" têm uma história para contar. Dá para culpar as diferenças culturais ou os riscos desnecessários que viajantes cometem em arroubos de liberdade on the road. É verdade que parte da graça de viajar está em se libertar das amarras da rotina e cometer pequenas (ou grandes!) loucuras. É bom baixar a guarda. Mas viajar pode ser perigoso porque viver às vezes é perigoso. E assim como roubo, intoxicação alimentar e bedbugs são preocupações sem gênero, volência sexual é geralmente uma preocupação feminina. Uma preocupação constante.
Tenho uma amiga que atravessou a América do Sul de ponta a ponta pegando carona. Ela diz que se sentiu segura todos os dias, mas que estava sempre prestando atenção para não se colocar em situações de risco. Essas viajantes incríveis são pessoas reais. Mas também existem histórias de mulheres que desaparecem, que recebem cerveja com sedativo, que são vítimas de estrupo coletivo. Essas histórias também são reais. Não preciso te dar exemplos, se você quer saber, é só ler aqui.
A minha história ruim aconteceu em 2014. Estava visitando Kanyakumari, extremo sul da Índia. É um lugar de peregrinação, onde Gandhi pediu para espalharem suas cinzas, onde uma estátua de trinta metros de altura em homenagem a um filósofo hindu se erge do meio do mar. Kanyakumari é bem longe de casa, mas não é exatamente um lugar ermo no meio de uma civilização isolada. É uma cidade cheia de vida e de gente, com hotéis e grupos de turistas europeus comprando bugigangas no mercado.
Depois de fotografar o pôr do sol mais bonito do mundo, decidi tomar uma cerveja no bar ao lado do hotel. Desisti após cinco minutos, assustada com olhos dos homens em cima de mim. Não sei se é importante dizer, mas estava usando roupas largas cobrindo todo o corpo, e o item mais chamativo que carregava era um caderninho. Quando um grupo mais alterado começou a falar alto e gesticular na minha direção, levantei e fui tomar minha cerveja no quarto. Resultado: homens bateram na minha porta, rindo e gritando, durante boa parte da noite. Sim, dentro do hotel. Quando chamei o recepcionista pelo telefone do quarto, ele se recusou a fazer qualquer coisa porque “é só o room service”. A porta tinha uma grade grossa com cadeado, e ficou a noite toda bem fechada, mas posso imaginar situações em que uma outra pessoa no meu lugar abriria para reclamar, brigar ou tentar sair.
Verdade seja dita, fiquei no sul da Índia quase um mês e não recebi mais do que gentileza e olhares curiosos de pessoas que não estão acostumadas a ver mulher de cabelo curto e tatuagem em cidades pequenas. Esse incidente foi o único momento em que me senti ameaçada. Nunca entendi o que o grupo de homens bêbados estava falando, mas algumas coisas são universais. Pra eles, eu era uma mulher sozinha levando cerveja pro quarto do hotel. Na visão dos comentaristas de portal por aí, eu “estava pedindo”.
Na minha história não aconteceu nada grave, mas em outras histórias essas coisas acontecem. Viajar é diferente para homens e mulheres porque viver é diferente para homens e mulheres. Na estrada encontramos gente amigável e maravilhosa, mas também encontramos o mesmo sexismo bruto que existe em casa. A insegurança não pode ser desculpa para você deixar de fazer qualquer coisa, mas tem que ser motivo para você prestar atenção, saber onde está e ouvir seus instintos.
Ah sim, a moça na Romênia acabou tendo uma conversa firme com o tal guia e ameaçou expor o nome da empresa na reportagem que está escrevendo. Ele se disse envergonhado e pediu desculpas. Ela conseguiu terminar o trabalho e voltou pra casa.
Leia também: “Ungrateful bitch: travel and sexism”, no ótimo No-Yolo.