Criativos abrem o armário e o coração pra contar de peças que carregam lembranças
Fotos das peças do coração de Adelaide Ivánova, Fábia Bercsek e Helena Sasseron
Toda peça de roupa tem uma história, algumas mais do que as outras. O que vestimos está impregnado de memória. Como acontece com aquelas peças repassadas de mãe pra filha, de pai pra filho, de amiga pra amigo, de avó para neta; sabe? Tornam-se especiais pela forma e caimento que o tempo deu a elas, por serem perfumadas por cheiros distintos e manchadas por acidentes do tempo. Então vão se alimentando de momentos, de abraços, de fios de cabelo e de lençóis, como um papel de carbono, pronto pra receber impressões. Por isso algumas peças tornam-se de estimação.
"Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma meia-verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem."
O livro O Casaco de Marx: roupas, memórias, dor [Editora Autêntica, 2008] , de Peter Stallybrass , nos fez pensar sobre as relações construídas pelas roupas e com as roupas. No primeiro capítulo, o autor conta de quando começou a pensar nas simbologias que a indumentária pode abrigar, ao usar uma jaqueta de um grande amigo que havia morrido:
"Se eu vestia a jaqueta, Allon me vestia. Ele estava lá nos puimentos do cotovelo, puimentos que no jargão técnico da costura são chamados de 'memória'. Ele estava lá nas manchas que estavam na parte inferior da jaqueta; ele estava lá no cheiro das axilas. Acima de tudo, ele estava lá no cheiro", " Comecei a acreditar que a mágica da roupa está no fato de que ela nos recebe: recebe nosso cheiro, nosso suor; recebe até mesmo nossa forma. E quando nossos pais, os nossos amigos e os nossos amantes morrem, as roupas ainda ficam lá, penduradas em seus armários, sustentando seus gestos ao mesmo tempo confortadores e aterradores, tocando os vivos com os mortos... Eu vesti a jaqueta de Allon. Não importa quão gasta estivesse, ela sobreviveu àqueles que a vestiram e, espero, sobreviverá a mim. Ao pensar nas roupas como modas passageiras, nós expressamos apenas uma meia-verdade. Os corpos vêm e vão: as roupas que receberam esses corpos sobrevivem.”
Inspirados nesse texto, pedimos a um grupo de pessoas ligadas à arte e a moda que contassem suas histórias e nos mostrassem suas peças do coração. Eles abriram o armário (e a memória) pra contar das marcas dadas pelo tempo a cada uma delas.
A estilista Fabia Bercsek
Crédito: Arquivo pessoal
Cris Guerra, do blog Hoje Vou Assim - " Antes de ser blusa, ela foi um lenço antigo da minha mãe, falecida há 18 anos. Ele ficou comigo, entre as coisas que herdei dela, e eu tinha muita vontade de usá-lo de alguma forma. Mas ele tinha um formato retangular, com franjas, e eu não sabia usar lenços naquela época. Então pedi à minha avó paterna, com quem eu tinha uma grande afinidade e de quem herdei o meu gosto pela moda, para fazer uma camiseta com o lenço. Ela tirou de seus guardados essa correntinha que faz o papel da alça, costurou o lenço fechando-o em um cilindro e a blusa estava pronta. Mas o que mais gosto é a o desenho da costura que ela fez para fechar a blusa, perto da franja. É a cara dela essa criatividade! Hoje, sinto saudade das duas. Minha mãe faleceu em 1994, com 55 anos apenas. Minha avó Juju, com 95 anos, em 2004. Elas se amavam muito, eram sogra e nora apaixonadas uma pela outra. E a blusa acabou se tornando uma lembrança duplamente afetiva. É uma blusa com dois corações. Mais o meu, três! "
Crédito: Arquivo pessoal
Rita Wainer, artista plástica - "Essa é uma roupa que eu usava quando pequena. Minha mãe guardou e hoje eu coloquei ela na parede. Acho q era uma fantasia mesmo, não uma roupa de usar no balé. Naquela época as fantasias eram mais básicas mesmo: pirata, bailarina, super-homem. Enfim, eu amo essa peça e acho que na parede eu consigo congelar um pouco da minha infância."
Crédito: Arquivo pessoal
Brisa Issa, produtora - "Bom, eu sou uma pessoa bem apegada com meu vestuário. Confesso que foi bem difícil escolher qual roupa minha eu tinha uma ligação emocional maior, pois quando encano numa peça não me desgrudo (tanto que tenho até hoje uma bermuda customizada por mim mesma da época que eu andava de skate). A saia midi de oncinha e o cardigã preto foram presentes da minha amiga Patricia Grejanin, estilista da Laundry. A história começou pois sou louca pelas roupas da Laundry, que tem uma pegada vintage que eu AMO, porém nenhuma ficava legal em mim. Daí para resolver meu problema a Pati fez a saia sob medida. Já o cardigã (chamo ele de 'cardigã velhinho do amor'): eu estava louca por uma peça assim, mas tinha que ser preta. Fiz minha mãe rodar Salvador inteira atrás de um e eu rodei por aqui em São Paulo. Quando eu tinha desencanado e desistido de ter um cardigã preto, me aparece Pati: 'amiga, tenho umas roupas pra te dar... tem este cardigã aqui que eu não uso mais pois tenho outros 50, você quer?' Nossa, quase chorei!!! Alias, é assim até hoje. Sempre ela acerta nas roupas que me dá! Eu sei que são peças que eu nunca pretendo me desfazer, foram presente de uma das minhas melhores amigas"
Crédito: Arquivo pessoal
Helena Sasseron, planejamento da Agência Carme e DJ residente da noite Decadance, do Alberta#3 - "Não foi fácil escolher uma peça com memória, ainda mais num tempo em que ando meio desapegada, desfazendo-me de muitas coisas que, mesmo com suas histórias e simbologias, eu não uso mais.... Esse par de botas foi o meu primeiro par de Dr Martens, que comprei ainda adolescente e está comigo há mais de dez anos, me acompanhou em quase todas as minhas viagens. Ele me faz lembrar da menina rebelde que que eu era e o quanto dela ainda existe em mim. Adoro observar como os looks que monto com ele mudam a cada ano - antes eram shorts super curtos com meia arrastão rasgadas, hoje são jeans cintura alta com camisa de seda.... Mas o que mais amo nele é o fato de ser interminável, o que me faz imaginar quantas histórias ele já carrega e quantas ainda cabem nele."
Crédito: Arquivo pessoal
Juliana Cunha, jornalista - "Minha irmã mais velha ganhou essa camiseta de presente da madrinha quando tinha uns 14 anos. Usou até enjoar, crescer e engordar. Não lembro exatamente o motivo, mas a camiseta encerrou suas atividades com a primeira dona e foi parar no meu armário. Acho que todo irmão caçula fica meio puto com essa história de herdar os trapos. Eu ficava, pelo menos. Hoje minha irmã tem quase 28 e a camiseta continua no meu armário. Ela é terrivelmente curta - mal cobre o umbigo, então, só uso com short santropeito. Deve ter sido feita em kevlar, essa parada, porque até hoje não deu sinais da idade que tem."
Crédito: Arquivo pessoal
Adelaide Ivánova, fotógrafa - "Esse casaco de lã eu ganhei da mãe do meu namorado. Pertencia ao pai dele, quando ele (o pai) era criança. Os dois não estão mais juntos. Gosto de pensar que o casaco pertenceu ao homem que outra mulher amou tanto, antes mesmo que eles se conhecessem. Outra parte meio lunática da minha obsessão com a peça é que eu gosto de pensar em Florian, o pai, quando criança, usando o - hoje meu - casaco na trágica Alemanha do pós-guerra."
Crédito: Arquivo pessoal
Ronaldo Fraga, estilista - "Não costumo guardar roupas. Acredito que o tempo todo elas pedem para existir em outros corpos, em outras estorias. Mas esta camisa faz a linha 'memoria insistente para ficar'. Comprei num brechó assim que cheguei em Londres para morar, em 1992. Ela é de algodão, fio tinto, provavelmente do inicio dos anos 70. Ela já veio carregada de memorias, para habitar o meu corpo. Silenciosamente, ela me relembra um tempo em que eu não sabia ao certo o que eu iria ser quando crescesse, mas bebia um novo mundo de uma forma foraz e apaixonada."
Crédito: Arquivo pessoal
Paula Reboredo, do brechó B.Luxo - "É um chapéu que comprei em Berlin em uma feira de antigüidade super legal chamada MauerPark. Achei legal a história do chapéu pois o cara que me vendeu (que era mega cigano) me disse que lembrava da mãe dele usando esse chapéu quando ele era criança. A história é do final dos anos 60. Ele ainda disse que ficou feliz em vender pra mim pois eu iria saber como usar! Amei tanto que já sai vestida com o chapéu da feira!"
Crédito: Arquivo pessoal
Ana Guadalupe, escritora - "Comprei esse casaquinho roxo há 9 anos, logo no início da faculdade, numa loja dessas populares que têm tudo bem barato. Se não me engano, custou 16 reais. No início acabei não usando, achei que o tecido pinicava, mas depois de uns meses se tornou uma das minhas peças preferidas. Usei em todas as situações possíveis durante todos esses anos, incluindo as mais patéticas. É claro que ele carrega memórias de outros 'estados mentais', outras casas, empregos, companhias. Foi há alguns meses que um colega de trabalho comentou que o casaco parecia velhinho, rs. Acho que eu não tinha notado que era hora de aposentar. Em poucos dias, o tecido começou a rasgar, e agora tenho um casaco roxo de usar em casa"
Crédito: Arquivo pessoal
anterior
proxima