Ou sobre como decidi passar uns meses morando fora para me arrepender da decisão em seguida
Chegamos a Nova York numa tarde ensolarada e quente de domingo. Esperando o táxi que nos levaria para aquela que seria nossa casa pelos próximos 12 meses, percebi que estava prestes a viver o segundo verão do ano, pensamento que não me agradou, porque minha alma prefere as temporadas outono-inverno. Suando e sentindo a roupa grudar à pele, ajudei o motorista a colocar no carro as quatro malas enormes que minha mulher trouxe (a minha, comparada às dela, é praticamente uma valise). Enquanto cruzávamos a cidade e eu descolava a camiseta da pele dando leves e ritmadas puxadinhas no tecido à altura do umbigo, testemunhava o domingo acontecer pela janela. Nesse instante, pensei aliviada que, depois de ter morado em Los Angeles por quase uma década, não teria muito problema para me adaptar, porque já conhecia os hábitos e costumes locais. Mas, antes que a segunda-feira chegasse, entenderia que não poderia estar mais enganada.
Nova York é uma cidade estranha. Por aqui, a solidão é uma entidade a ziguezaguear pelas avenidas. Mulheres e homens de expressão entristecida passeiam como zumbis pelos metrôs e farmácias e mercados, quase sempre com muita pressa, porque quem não tem pressa é engolido, pisado, atropelado. É preciso correr sempre e correr muito para poder pertencer a uma cidade movida a dinheiro e lucro e gastos.
Nas ruas, uma a cada dez pessoas fala sozinha, dirigindo-se a alguém que não está ali ou que eu não tenho a capacidade de ver. Os diálogos jogados ao vento são sempre irados e revoltados com o sistema do qual estão certamente excluídas ou pelo qual foram marginalizadas. Lixo se acumula pelas calçadas com a mesma rapidez que ratos passam pelos trilhos imundos e molhados dos metrôs. Os sem-teto habitam quase todas as esquinas e me fazem pensar que um sistema que deu muito certo para alguns e muito errado para outros não pode ser bom. E os cheiros. Cada esquina oferece um aroma diferente, que varia do mijo acumulado, passando pelo do lixo amontoado e chegando até o do odor inconfundível que vem da pele humana que não toma banho há semanas.
“I am sorry”
Todos os dias, a cidade convida você a mostrar seu pior lado: aquele que é capaz de agredir antes de ser agredido, de pisar antes de ser pisado, de ofender antes de ser ofendido. Se há no mundo um lugar que pode ser traduzido como o oposto do ideal para se entregar à busca espiritual, ele tem que ser Nova York. Nada aqui é altruísta, não existe o todos por um, apenas o todos empurram um, e, se você não estiver suficientemente apressado, ou revoltado, ou disposto a sair dando golpes em qualquer outro que cruze seu caminho, esse um será você. O nova-iorquino é um cidadão confinado a si mesmo, fechado em seu casulo por uma carranca, um fone de ouvido, a incapacidade de olhar no olho do outro e o talento para falar sozinho. Nada parecido com Los Angeles, cidade infinitamente menos tensa, menos agressiva e menos apressada.
Pedir uma informação na rua é ato de coragem. Na melhor das hipóteses, você obterá uma resposta dita tão apressadamente que não poderá ser entendida. Nesse caso, o turista mais esperto saberá que dizer “não entendi” não é opção válida. O jeito é agradecer e sair andando – com sorte, para o lado certo. É inevitável que, ao longo do dia, você acabe se sentindo um idiota, um desencaixado, alguém que seria capaz de tentar tomar um sorvete pela testa. Acontece comigo quando demoro mais de 2 segundos para achar o cartão do metrô na bolsa e escuto o muxoxo de quem vem atrás e não pode esperar para passar pela catraca. Nessa hora, com a mão trêmula, demoro ainda mais para encontrar a droga do cartão e vou dizendo “I am sorry”, certamente a expressão que mais usei até agora. E, quando finalmente acho o cartão, a máquina não consegue lê-lo e tenho que passar outra vez. Talvez se ao escutar a bufada atrás de mim eu dissesse apenas “Go to hell, stupid asshole” ganhasse um pouco de respeito, mas ainda estou tentando não me deixar falar a língua local, ainda que o sistema continue a me tentar. Depois de gastarmos algumas centenas de dólares em uma cama, um sofá e uma mesa, o básico para nos instalarmos, a badalada loja sueca de móveis na qual compramos tudo não entregou uma das caixas e agora temos no meio da sala um sofá sem braços e sem pernas, que deverá continuar assim até o final de nossa aventura nova-iorquina, porque ninguém sabe onde foi parar a caixa que falta, e ligar para a megastore sueca é um ato de autoflagelo.
Sabendo de tudo isso, fui até uma loja de eletrônicos comprar o aparelho de TV para nossa nova casa. A loja ficava a uma distância de 10 minutos a pé do apartamento, e decidi que levaria o troço sozinha porque não queria mais depender do tal “we deliver” que já tinha me ferrado com o sofá. Abobada pela pressa de ter uma TV na sala, não pensei que meus bracinhos curtos e fracos não aguentariam levar a caixa do aparelho de 40 polegadas por três longos blocos. Então, desajeitadamente (meu estado mais constante), parava a cada dois passos para respirar e me alongar. Na terceira parada, senti alguém se aproximando e já me aprumei para o embate, qualquer que fosse ele. Ao meu lado, um rapaz de uns 30 anos, de olhos muito azuis, me perguntou se eu queria ajuda, e entendi na mesma hora que ele ia roubar minha TV. Mas eu estava exausta e queria ajuda, então pensei que o risco valia a pena, e que eu poderia correr atrás dele e alcançá-lo em caso de roubo porque, afinal, ele estaria fugindo a pé com uma TV de 40 polegadas nos braços. Mas Gabriel apenas levou a TV até meu apartamento. Não falamos muito durante o trajeto, mas soube que nasceu em Nova York, onde mora até hoje. Na porta de casa, ele sorriu, disse que tinha sido um prazer me ajudar e foi embora.
Gabriel jamais saberá que, sozinho, me fez entender como um pequeno e desinteressado gesto de bondade pode transformar a forma como percebemos e aceitamos a realidade ao nosso redor. E, além de Gabriel, Nova York tem a Strand Bookstore, as french toasts, o Trader Joe’s, restaurantes que servem café da manhã durante todo o dia, o sweet-chili sauce do Whole Foods, a caramel popcorn nos cinemas, o Marcelo e, o melhor da cidade, minha mulher abrindo a porta da sala todas as noites para jantar comigo e, depois, dormir a meu lado.
A carioca Milly Lacombe, 45 anos, já exercitou sua paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu apartamento em São Paulo, onde mora com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com