Alexandra Loras, consulesa da França no Brasil, percebe o racismo velado que existe no país
A consulesa da França no Brasil, Alexandra Loras, 36 anos, percebe o racismo velado que existe no país, mas aprendeu a abstraí-lo
“Me dei conta de que algo como raça existia quando tinha uns 5 anos. Estávamos todos na escola e uma menina resolveu me desenhar. Quando ela me deu o papel, não acreditei: ela havia me pintado inteira de marrom! Eu nunca tinha me dado conta de que não era branca. Minha família tinha uma boa condição financeira. Cresci rodeada por brancos, estudei em escola de brancos, minha mãe era branca. Depois desse episódio, esta virou a questão da minha vida: como resgatar meu sangue negro se eu desconhecia a própria cultura negra? E o que fazer com o meu lado branco, por assim dizer? Meu pai era africano, nasceu e cresceu em uma aldeia na Gâmbia. Aculturou-se não sei como e foi para o Ocidente tentar a vida. A ideia era ganhar dinheiro e melhorar a condição da família que deixou para trás. Em Paris, conheceu minha mãe e a pediu em casamento. A família ficou em choque. Ele morreu quando eu era jovem, tivemos pouco contato. Só fui conhecer a Gâmbia e meus familiares quando já tinha 21 anos. Até esse momento, me achava mais francesa do que africana, não conhecia minha outra origem.
Creio que finalmente resolvi essa questão quando fiz minha tese de mestrado na Sciences Po [renomada universidade francesa]. Era sobre a presença dos negros no noticiário televisivo francês. Depois eu mesma fui parar na televisão, como apresentadora do canal TF1, em que falava sobre música e política.
"Você se acha melhor só porque sua pele é de outra cor?"
Já morei em oito países. Em cada um o racismo se dava de um jeito diferente. No Brasil, onde estou há um ano e meio acompanhando meu marido, o cônsul da França, Damien Loras, sinto que ele existe, com certeza, mas se manifesta de forma velada. Quando vou em algum jantar, sinto as socialites me farejando, sem entender como e por que eu estou ali. São pouquíssimos negros no meio em que vivo aqui. Cruzei com aquela jornalista famosa da Globo [Glória Maria] e com a Adriana Alves, mulher do chef Olivier Anquier. Mas só. No clube, certa vez um homem passou na minha frente na fila da lanchonete porque achou que eu era uma funcionária. E também já cansei de ir no [shopping] Iguatemi com o Rafael [filho de 1 ano do casal] e virem me perguntar se sou a babá dele. Acho engraçado também os supostos elogios que fazem a ele: ‘Como é lourinho!’, ‘Nossa, que alemãozinho lindo!’. Como se essas características físicas fossem uma qualidade em si. Sinto muito isso no Brasil, esse ideal de beleza branca dominando o inconsciente coletivo. Eu já sofri muito com essas coisas, até que resolvi simplesmente não me importar. Aprendi a me desarmar no Brasil. A beijar, abraçar o outro. O racismo não é culpa da pessoa, mas sim de todo um passado de injustiças que a precede.
Uma experiência que me fez colocar tudo isso em outra perspectiva foi ter participado de um ritual xamânico, no qual se toma a ayahuasca, na Amazônia. Foi uma experiência muito intensa. Sei que não sou a mesma pessoa que era antes. Aliás, uma das coisas que mais me impressiona no Brasil, este país lindo onde cada vez mais me sinto em casa, é a abertura e a liberdade com que se fala sobre espiritualidade. Me tornei uma pessoa muito mais espiritualizada aqui. Toda segunda-feira realizo encontros em casa onde praticamos ioga e falamos sobre esse assunto. Há seis anos, costumo ir ao Burning Man [festival de contracultura que acontece todo ano no deserto de Nevada, nos Estados Unidos]. É um festival baseado em dar e receber, que valoriza a honestidade acima de tudo. As pessoas se libertam, encarnam personagens. Na última edição, inspirada pelo filme Efeito sombra, resolvi ser a Barbie Terrorista, uma mulher negra que joga ‘bombas mentais’ nas pessoas. Uma mulher, branca, se aproximou e pediu uma ‘bomba’. Perguntei: ‘Por que você se acha melhor do que eu só por ser branca?’. Ela pensou, pensou, e disse que entendia a minha dor. Choramos juntas, conversamos muito. Depois do exercício me dei conta que os brancos de hoje não são responsáveis pelas atrocidades do passado. Culpar a nova geração pelo racismo seria como comparar os novos alemães a Hitler.”