Depois de dez anos de grude, passar um tempo longe não pode ser assim tão ruim
Caiu aquele pano lindo que você pregou na parede. Caiu uma parte, na verdade. Mas eu não acho a tarraxa que prende a ponta que soltou. Deve ter caído há dias, mas eu só vi agora, você sabe como eu não reparo nessas coisas, embora o pano seja enorme e pegue a parede inteirinha. Pensando bem, escutei um barulho uma hora dessas, enquanto lia no sofá. Mas, depois de tirar os olhos do livro por alguns segundos, matutei, matutei, decidi que não era nada e voltei a ler. Mas hoje vi que foi isso então. Ah, e queimou a lâmpada da entrada. Eu não consigo soltar a parte de fora, a de vidro, para poder trocar a lâmpada que fica dentro. Como tem escurecido antes das 5 da tarde, porque aqui é inverno e no inverno escurece bem cedo, a entrada da casa agora fica sempre um breu. E o inconveniente disso é que é bem ali que as cachorras decidem fazer xixi quando querem dar algum recado, tipo avisando que estão meio bravas, e agora já não posso mais ver se tem xixi ao entrar em casa, o que me deixa com medo de pisar no xixi, e por isso tenho entrado na ponta dos pés e, quando chego naquela área de risco, dou um pulo e vou cair quase depois da porta da cozinha. Já fui melhor de pulo, mas considero bastante razoável o alcance dessa manobra que inventei para entrar em casa. Outro dia a vizinha me viu entrar executando esse allegro bizarro e acho que fez uma cara estranha. No meio do salto eu percebi que alguém estava olhando e abri os braços na esperança de que ela achasse que eu talvez fosse bailarina, embora meu corpinho esteja mais para lateral esquerdo de time de futebol.
As cachorras andam meio amuadas, aliás. Não sei se é essa calefação, que passa o dia ligada e sobre a qual não temos controle porque quem cuida disso é a prefeitura, se é a escuridão ou se não é nada disso. E eu também ando um tico amuada, para ser bem sincera.
Enfim, só
Sempre que você viaja minha primeira reação é pensar que terei uns dias sozinha, e que, como eu adoro ficar sozinha, e nunca fico porque faz dez anos que grudamos, um grude que surpreende até para padrões lésbicos, que já são altamente grudantes desde o primeiro beijo, esses serão dias de glória, eu penso. Me imagino lendo até tarde na cama, sem ninguém para reclamar que a luz acesa incomoda. Me imagino vendo Cosmos na TV sem ninguém para dizer que não aguenta mais ver aquilo e que gostaria de ver alguma outra coisa, e que seria legal eu achar essa outra coisa porque sou eu que sei achar os programas bons na TV. Me imagino escrevendo até tarde, ou fazendo meu curso de teoria marxista on-line, sem ninguém para gritar do quarto que não quer ficar sozinha na cama. Me imagino brincando no Twitter sem ninguém para olhar estranho e dizer que tenho uma vida paralela nas redes sociais. Me imagino acordando um pouco mais tarde porque não preciso dar o café da manhã para ninguém, e aí lembro que na semana passada, enquanto comia seus ovos mexidos, você me disse: “Os ovos estão vindo da cozinha meio moles demais”. Como na cozinha só tem eu, respondi que ia ter uma boa conversa com a mocinha dos ovos e dizer a ela que seria preciso mudar o preparo, dar aquela caprichada. Mas, sem você, a mocinha dos ovos – essa que agora faz curso de teoria marxista e entende que está trabalhando na produção de um excedente que tem sido apropriado por terceiros – teria folga. Então, imagino tudo isso e me animo. E, afinal, a viagem é por menos de uma semana, você avisa. Eu digo que é para você ir tranquila porque ficaremos todas bem. Você ainda está no táxi a caminho do aeroporto e já abrimos uma garrafa de vinho, as cachorras e eu, pegamos um livrinho e sentamos no sofá. E em 10 minutos sua ausência já não me parece mais tão divertida assim.
Deito na cama, não leio nem uma linha e apago a luz. Durmo mal e com frio, acordo de madrugada depois de escutar um barulho medonho e demoro a pegar no sono outra vez. O barulho era uma das cachorras tentando entrar na banheira executando seu próprio allegro a fim de se estirar no geladinho da fórmica e escapar do calor da calefação, mas o salto deu errado e, depois de patinar por alguns segundos tentando encontrar atrito na banheira lisa, as patinhas abriram e ela caiu de barriga.
Volta!
No dia seguinte, vejo os ovos na geladeira e penso que não tenho para quem quebrá-los. Você telefona e, agora que o futuro chegou, as ligações têm vídeo e eu posso ver você, o que é ao mesmo tempo bom e ruim. Mas você está tão longe… Quero pedir que volte, mas acho que soaria doentio dado que não faz nem 15 horas que você saiu, então não digo nada. Tento buscar em mim aquela sensação de antes, que se parece com liberdade e que me invadiu quando você disse que ia viajar. Não a encontro. Tudo em mim é saudade e tesão. Quero fazer amor com você, mas você não está na cama. E ainda faltam 120 horas para você voltar.
Olho para as cachorras e vejo nelas um olhar mais perdido do que o meu. Elas sabem que sozinhas comigo a vida não é fácil. Lembro que você disse para eu não deixar faltar água no pote delas porque é sempre você que coloca água ali, e emendou com “porque você é incapaz de checar o pote”. Levanto para ver e de fato o pote está irremediavelmente vazio, o que talvez explique o olhar delas. Coloco a água e expresso um pedido de desculpas que elas escolhem ignorar. Quando finalmente param de beber água, depois de uns 15 minutos, voltam para o sofá cabisbaixas e eu digo que não aguento mais o muxoxo, e que elas precisam se conformar porque ainda faltam 120 horas e teremos que passar por isso juntas. Outra vez me ferem com aquelas expressões de pura tristeza antes de deitarem as cabeças e fecharem os olhos. Elas pelo menos conseguem dormir sem você, agora que estão hidratadas.
Faz dez anos que sou essa completa doente abobada de amor por você. Amar você é, de tudo o que eu faço na vida, o que me dá mais prazer e o que me dá mais retorno. Vem com a sensação de que, ao me amar de volta, você faz por mim o que antes de você ninguém fez: você me legitima. Cada pedacinho de minhas esquisitices e chatices e manias; você legitima tudo em mim. E na sua ausência eu me sinto sem legitimidade. Então, não quero pressionar, mas se desse para voltar mais cedo para casa a gente agradeceria. Eu juro que apago a luz assim que você deitar.
A carioca Milly Lacombe, 46 anos, já exercitou a paixão pelo futebol no SporTV e na Record, como comentarista esportiva. Também já colaborou com diversas revistas e com o portal Terra, mas gosta mesmo é de escrever livros em seu cubículo em Nova York, onde foi passar uma temporada com duas cadelas e uma gata. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com